19 outubro 2013

Pau que bate em Chico...

Chico Buarque, de quem talvez menos se esperava a defesa da “autorização” para a publicação de biografias, foi também quem mais se enrolou nas justificativas para sua posição. Primeiro publicou em O Globo um artigo curto e superficial defendendo o veto de Roberto Carlos à biografia de Paulo César Araújo, não sem acusar o autor de “Roberto Carlos em detalhes” de ter mentido sobre uma entrevista dada por ele, Chico, para a obra expurgada. Assim que foto, vídeo, áudio e outros recursos sinceros deixaram claro o equívoco do compositor, ele se desculpou, mas com ressalvas.

Depois admitiu que poderia estar mal informado e saiu-se com a seguinte declaração, de onde foi tirada a manchete de sua entrevista para a Folha de S. Paulo nesta sexta-feira: “Continuo achando que o cidadão tem o direito de não querer ser biografado, como tem o direito de não querer ser fotografado ou filmado. Me pareceu natural isso. Parece que não”.

Diante disso, fica claro que Chico Buarque está confuso. O músico não tem obrigação de ser um especialista para formar a sua opinião, mas quando se propõe a adotar e defender uma posição no debate público deveria, sim, estar melhor informado. Ainda mais diante de sua própria história de vida.

O que está em discussão não é o direito de querer ser biografado. Isso ele pode querer ou não. Acontece que, como a pessoa pública que é, Chico não pode ter esse controle. Defender a recusa à biografia é bem diferente de defender a censura prévia - como hoje a lei brasileira permite. Os membros do Procure Saber arrepiam-se ao verem-se taxados de censores, mas neste caso não há espaço para meias palavras. Autorização prévia é, sim, condição de censura.

Toda e qualquer pessoa pública – artistas, políticos, esportistas etc. – tem o direito de querer colaborar com possíveis biógrafos. É um direito moral, pode-se admiti-lo ou não. Na sua biografia de David Bowie, o americano Marc Spitz diz logo de cara que adoraria falar com o músico inglês para logo se lamentar: Bowie, infelizmente, não fala com biógrafos.

Qualquer pesquisa rápida na Amazon nos mostra dezenas de biografias e perfis do camaleão. Todas foram feitas sem o depoimento do próprio Bowie? Sim! E Bowie tentou censurá-las? Não! Simplesmente se resguardou e tomou a decisão de não falar com biógrafos, talvez por não querer ver sua vida pessoal exposta. E não é isso que vai fazer dele um censor, muito pelo contrário.

Estudantes de jornalismo conhecem a célebre reportagem de Gay Talese, “Frank Sinatra está resfriado”. O perfil ficou famoso porque o repórter o fez sem ouvir o próprio Sinatra. Ora, há pelo menos dois mil anos estudos históricos e biografias vêm sendo feitos dessa maneira. As fontes para historiadores, jornalistas e biógrafos são inúmeras e pode-se, ainda que não seja o ideal, dispensar o depoimento direto em muitos casos. Se houver injustiças ou inverdades, aí está a justiça para garantir reparações por possíveis danos. E por mais precária que seja a realidade brasileira, é difícil imaginar editores apostando em obras levianas em busca de “milhões”.

Coisa que, aliás, acontece nos países anglófonos. Em lugares como os Estados Unidos ou a Inglaterra são publicadas inúmeras biografias sensacionalistas e “não autorizadas” (só esse termo renderia um longo estudo sobre as relações do brasileiro com o poder oficial), sobretudo de celebridades. Pois eu ia dizer que, diante dessas biografias “não autorizadas” há uma tendência bastante comum entre as pessoas públicas: elas contratam um ghost writer ou um parceiro ou então elas mesmas se propõem a escrever, de próprio punho, suas histórias de vida. E estas passam a ser – vejam que interessante – apenas mais uma versão dos fatos. Não é porque foi publicada pelo próprio autor que é a verdadeira. O que estou dizendo é que não há uma versão verdadeira. Pode, sim, haver uma oficial, mas ela não é a única. E isso é perfeitamente entendido nesses mercados.

O que é melhor: dezenas de biografias de David Bowie ou nenhuma, nem mesmo a “oficial”, de Chico ou Caetano?

Recentemente, o escritor Philip Roth, que vive cotado para ganhar o prêmio Nobel de literatura, anunciou que deixaria de escrever ficção e que passaria a dedicar-se à sua biografia. Percebem? Figura notória e admirada no mundo inteiro, Roth sabe que não tem como evitar o interesse de seus leitores por sua vida.

Cioso de sua carreira literária, vai oferecer ao público a sua própria história, na qual jamais vai constar que engrossou um movimento para proibir a liberdade de expressão e controlar o interesse público, como já consta da biografia de seu colega Chico Buarque de Holanda, com desculpas e tudo.

25 junho 2013

Ideias são à prova de bala


Alan Moore sabia o que estava fazendo quando escreveu "V de Vingança" ("V for Vendetta" no original"). Ao retomar a figura histórica de Guy Fawkes, o conspirador que colocou barris de pólvora no parlamento inglês em 1605, em uma atitude que até hoje divide os ingleses, ele estava questionando o destino histórico da Inglaterra de Margareth Thatcher e alertando para os perigos de uma sociedade que caminhava para o liberalismo com extrema vigilância. 

Não por acaso, anos depois da publicação na Inglaterra em 1982, Londres se tornaria uma das cidades mais vigiadas por câmeras em todo o mundo. Não por acaso, os Estados Unidos, a nação símbolo da liberdade, se veriam embaraçados por bisbilhotar a vida privada de seus cidadãos. 

Para escrever sua distopia ilustrada por David Lloyd, Moore recorreu a inúmeras fontes, mas o que sobressai é o clássico "1984", de George Orwell que, aliás, inspirou dezenas de obras semelhantes que abordam a vigilância nos sistemas totalitários. 

O romance gráfico foi adaptado por Hollywood em 2006, o que não agradou ao anarquista Moore. Mas foi certamente a partir daí que a obra se tornou popular, o que ficaria evidente com a crise financeira de 2008. Nas manifestações que ainda tomam conta da Europa e de outros continentes há sempre dezenas de máscaras do herói "V" desafiando parlamentos e homens representativos, nem sempre de modo simbólico. 

Lembro de uma entrevista que Moore deu ao Guardian em 2011 dizendo como se sentia orgulhoso das garotas e garotos que se manifestavam sob a máscara. Na obra, com o risco de serem identificados e presos, os manifestantes formam uma massa compacta com o mesmo rosto que desafia o poder. "Por trás desta máscara há mais do que carne. Abaixo desta máscara há uma ideia, e ideias são à prova de bala".

21 junho 2013

Conversa com o tio Alonso

Meu tio Alonso anda intrigado com a minha reação diante das manifestações que tomaram as ruas do Brasil nestes dias. 

– Não era você que vivia reclamando que o povo não ia às ruas? – ele perguntou.

– Mas a coisa já está ficando sem controle.

– É quase impossível controlar a massa, os protestos são legítimos. 

Tio Alonso lutou contra a ditadura. Ele viveu na clandestinidade no período mais duro do regime, chegou a ser preso e torturado. Por isso apoia toda e qualquer manifestação popular.

– O que acha que podia acontecer se os manifestantes invadissem o Congresso ou até mesmo o Planalto, tio? 

– Provavelmente uns seriam repelidos, outros presos.

– Mas e se, num extremo, eles se vissem cara a cara com a presidenta, o que fariam? (Tio Alonso gosta muito da língua portuguesa, por isso com ele fico à vontade para usar a palavra no feminino sem sentir aquele olhar enviesado que os críticos direcionam para Dilma.)

– Não dá pra saber, mas, mesmo num ato de radicalismo extremo, a democracia seria fortalecida. 

– Sei não... E a expulsão dos militantes de partidos das passeatas?

– Esses jovens foram criados ouvindo todo mundo falar em corrupção generalizada, em falta de investimentos em saúde e educação. Também não têm educação ou formação política, são muito midiatizados. Além do mais, nossa sociedade é muito conservadora. Eles vão aprender que os partidos são apenas a organização das vozes divergentes da comunidade da qual eles fazem parte. Em sociedades como a nossa, não dá pra haver representação individual. O que é preciso é uma reforma política. 

Otimista o tio Alonso. Eu confesso que ando bastante preocupado com as manifestações totalitárias e a falta de direcionamento dos manifestantes. Tio Alonso diz pra eu não me preocupar.

- E se a repressão à violência justificar uma intervenção militar? E se vier uma ditadura? – eu insisti.

- Difícil, mas saberemos como combatê-la.

18 junho 2013

A democracia brasileira é uma criança


Havia crianças na concentração para o protesto desta segunda-feira no largo da Batata, em S. Paulo. Diante do ocorrido na semana passada, podia-se pensar que era uma irresponsabilidade, mas a sensação geral era de paz e as mães cuidavam de vestir e maquiar os filhos com as cores do Brasil. 

A polícia apenas protegia as áreas das intermináveis obras do largo para que a multidão não transformasse entulhos e material de construção em armas. Fazia o que dela se espera, garantindo a ordem pública e a liberdade de expressão. 

Os manifestantes, em sua imensa maioria estudantes, logo deixaram clara sua insatisfação com a condução da coisa pública no país. As bandeiras que flamulavam no miolo da concentração motivaram os primeiros gritos contrários aos partidos políticos. Sem polícia e sem partido, a multidão seguiu pela Faria Lima com destino incerto. 

Ouviram-se gritos contra o aumento das passagens, contra a presidenta, contra a Pec 37, contra a Rede Globo, o prefeito, José Luiz Datena e a polícia. Não houve pichação, quebradeira ou violência. E logo se notou a coincidência de não haver policiais por perto. 

Também foram distribuídos panfletos anônimos contra os gastos de dinheiro público com as copas, contra a corrupção, a favor do porte de armas, da prisão perpétua etc. etc. Centenas de cartazes ilustravam as insatisfações e lembravam episódios vergonhosos e impunes como o massacre do Carandiru. 

Tudo é do jogo, mas, se por um lado chamava a atenção o número de pessoas, estimado em cerca de 65 mil, por outro impressionava a amplitude da insatisfação. Era tamanha que não se sabia para aonde ir. E os destinos da passeata foram se dividindo em direções opostas.  

Um dos achincalhados, o comentarista político Arnaldo Jabor, tinha revisto a avaliação inicial negativa que fizera do movimento Passe Livre e, desde de manhã, louvava a causa, não sem alertar para o perigo do vazio das manifestações.

De fato, diante de tantas aspirações genéricas, a sensação é de que a coisa se esvazia, mas não se enganem. Há, sim, um grito e ele é fundamentalmente contrário à velha política. Ainda não se sabe qual é a nova. Uma coisa, porém, é certa: ela começa quando o povo vai às ruas.

03 junho 2013

O livro sobre nada

O inglês John Gledson, estudioso da obra de Machado de Assis, cita na introdução de “Papeis Avulsos” que o francês Gustave Flaubert manifestou em uma de suas centenas de cartas o desejo de escrever "um livro sobre nada". 

Aí está a sabedoria do grande escritor. Escrever um livro sobre nada deve ser a pretensão de todos os autores. A meu ver, aliás, é precisamente esse desejo que diferencia a grande literatura das demais. 

Evidentemente escrever sobre nada é uma utopia, uma "aspiração paradoxal", como observou Gledson. A palavra, sabemos, é carregada de sentidos. Mas escritores sérios buscarão, sempre, o livro sobre nada como projeto inalcançável.

Flaubertianos célebres como James Joyce chegaram perto. É conhecida a boutade do irlandês como resposta a uma mulher que lhe perguntou sobre o que era um de seus livros, não sei se “Ulisses” ou “Finnegans Wake”: “o livro não é sobre alguma coisa, minha senhora, o livro é a coisa”. 

Vargas Llosa, outro devoto do francês, mesmo tendo recebido distinções como o Nobel de literatura, diz que sua grande obra, a que deve ficar, ainda está por vir. Do que ele está falando se não do nada?

O próprio Flaubert, aliás, dizia que, se pudesse, recolheria todas as edições disponíveis em seu tempo de “Madame Bovary”, a obra que o consagrou. E não se falaria mais nisso. 

É bom que se diga que escrever sobre o nada é muito diferente de nada escrever. A aspiração de Flaubert é apenas a evidência de que, para o artista, o processo em si é mais importante do que o resultado.

28 maio 2013

"Cuitelinho" e o elogio do anonimato


Na entrevista que deu ao Roda Viva há duas semanas, o escritor peruano Mario Vargas Llosa contou que, durante as pesquisas para o seu livro "A Guerra do Fim do Mundo", que trata do conflito de Canudos, viu no interior da Bahia violeiros entoando canções da Idade Media portuguesa preservadas durante séculos no território isolado do sertão nordestino.

“Cuitelinho”, composição tradicional do sudoeste do Brasil cujos versos anônimos receberam a contribuição de Paulo Vanzolini, pode não ser tão antiga quanto as canções que maravilharam Llosa, mas é um exemplo de permanência cultural que impressiona, para além da beleza, pelo que sua história tem de originalidade e de acaso.

A começar pelo título, uma revelação em si. “Cuitelo”, segundo o dicionário eletrônico Aulete, é “um dos nomes para beija-flor, em São Paulo”. Ou, de acordo com o Pequeno Dicionário Brasileiro da Língua Portuguesa (S. Paulo, Companhia Editora Nacional, 1972), um “brasileirismo de São Paulo”, “denominação genérica dos beija-flores, entre os caipiras”. “Cuitelinho” seria, assim, um pequeno beija-flor ou um “beija-florzinho”. 

Além do pássaro, a composição original, ou pelo menos a composição que chegou até nós, também faz referência a uma revolução no Paraguai. Como não sabemos com precisão a data em que a letra foi escrita, não podemos saber de que revolução ela trata, se a da independência do país (em 1811), se a da guerra que também envolveu Brasil, Argentina e Uruguai (1864-1870) ou ainda a Guerra Civil paraguaia de 1947.

Em diversas ocasiões, como nos programas Vox Populi e Ensaio, da TV Cultura, Vanzolini contava que o amigo Antônio Carlos Xandó, um prosaico fiscal de rendas “tarado por música caipira”, ouvira a melodia e os versos cantados por um barqueiro chamado “Nhô Augustão” em alguma parte do rio Paraná, divisa natural entre São Paulo e o atual estado de Mato Grosso do Sul que, na época, integrava o Mato Grosso. Havia apenas duas estrofes, que bem podiam ser as originais ou as sobreviventes de uma composição mais longa:

Cheguei na 
Beira do porto onde as ondas se espaia
As garça
Dá meia vorta e senta na beira da praia
E o cuitelinho não gosta
Que o botão de rosa caia, ai, ai, ai

Quando eu vim
Da minha terra despedi da parentaia
Eu entrei 
No Mato Grosso e dei em terras paraguaia
Lá tinha a revolução
Enfrentei forte bataia, ai, ai, ai

O desaparecimento e a recriação, geralmente anônima, de trechos de poesias ou canções é uma característica da tradição oral. No caso de “Cuitelinho”, sentindo a necessidade de mais letra para ser cantada, Vanzolini deu a sua contribuição. Como bem observou Marcelo Leite na Folha de S. Paulo por ocasião da morte do compositor, “estão ali talvez os versos mais formosos de uma das mais bonitas melodias do cancioneiro nacional”:

A tua
Saudade corta como aço de navaia
O cora-
Ção fica aflito, bate uma, a outra faia
Os óio se enche d'água
Que até a vista se atrapaia, ai, ai, ai

No Ensaio, reprisado pela TV Cultura em homenagem a Vanzolini, o autor falou, sem falsa modéstia, da dificuldade em fazer a rima em “aia” (a pronúncia caipira das palavras em "alha", de "navalha" e "atrapalha", por exemplo). Questionado sobre os versos de sua preferência, disse gostar mais da segunda estrofe, a das “terras paraguaias”. 

O problema, porém, aparece em “Um homem de moral”, documentário sobre a música de Vanzolini dirigido por Ricardo Dias. Nele, sem se importar com os conceitos de verso e estrofe, o cancionista diz ser o autor dos dois últimos versos de “Cuitelinho”: "o que não é meu é só o primeiro verso, os outros dois são meus". Assim, podemos supor que os versos sobre a o Mato Grosso e o Paraguai também teriam sido compostos por ele.

Em outro programa, Brasilianas.org, da TV Brasil, Vanzolini diz que deu uma “arrumada” no “Cuitelinho”: “Nhô Augustão tinha esquecido de uns versos, eu tinha esquecido de outros, eu dei uma arrumadinha e... tá aí, né?”

Ainda no Ensaio, o compositor revelou ter tomado conhecimento de uma nova estrofe da canção, anos depois dela ter se tornado célebre com suas dezenas de regravações:

Vou pegar
O teu retrato e vou botar num medaia
Com o ves-
Tidinho branco e o laço de cambraia
Vou pendurá no meu peito
Que é onde coração trabaia, ai, ai, ai

Diante disso e da contradição sobre a segunda estrofe cabe a pergunta: teria ele ouvido ou escrito esse último trecho adicional? Trabalhador incansável e perfeccionista que se demorava anos sobre uma letra ou rima, é difícil e talvez inútil saber o tamanho da inegável contribuição ou “arrumação” de Vanzolini em “Cuitelinho”. Teria ele feito uma nova estrofe, quem sabe insatisfeito com o comprimento da letra?

Não podemos saber. O fato é que, como aquelas canções do sertão de Vargas Llosa e ao contrário de tantas outras que se perderam, “Cuitelinho” sobreviveu. E Vanzolini ajudou a eternizar a bela melodia e os versos do anônimo letrista que, também não saberemos, podem ter sido a mesma pessoa.

(Foto: Stock.xchng)

29 março 2013

Sexta-feira Santa


Nasci numa Sexta-feira Santa, há 35 anos. Mas não creio que seja por isso que desenvolvi uma relação especial com a data, sempre vivenciada com muita contrição e respeito lá em casa.

Por ser um feriado, era comum que passássemos o dia em Itu, onde viviam meus avós maternos. E em Itu, com suas dezenas de igrejas e inúmeros rituais ao longo do ano, as palavras tradição e catolicismo têm uma força muito grande. Talvez por isso sempre me pareceu que parte da cidade não pertencia àquele tempo, era como se o lugar estivesse deslocado. E até hoje eu associo Itu aos filmes épicos que marcaram a minha infância, como “Os Dez Mandamentos” e “Ben-Hur”, freqüentes na programação da tevê durante aqueles dias. 

Na Sexta-feira Santa, meu avô jejuava o dia todo, diferentemente de nós, que simplesmente não comíamos carne. Lembro dele meio retirado, estranhamente calado, a barba por fazer, hábito que não se permitia em nenhum outro dia do ano. 

Minha avó contava que, quando pequena, a paixão era vivida na quinta-feira, quando as pessoas saiam de casa pela manhã sem sequer lavar o rosto e iam para o rio, onde se purificavam. Essa troca das datas fazia sentido para mim já que, reza a Bíblia, Jesus teria ressuscitado ao terceiro dia.

Em dado momento, minha mãe chamava a minha atenção para olhar para o céu. No meio da tarde, ela dizia, o tempo começa a mudar, o céu fica carregado e as nuvens negras aparecem para para marcar o momento em que Jesus entregou seu espírito.

Pode parecer superstição ou misticismo, mas não me recordo de Sextas-feiras Santas em que isso não ocorreu. O dia, assim como o de hoje, era estranho e arrastado. Meio sem entender, mas sempre respeitosos, minha irmã e eu esperávamos até o domingo, quando, em frente à Praça da Matriz, dava-se a “explosão do Judas”. Tradicionalmente, a malhação ocorre no Sábado de Aleluia, mas em Itu, em algum momento, a desforra tornou-se um espetáculo pirotécnico encenado no domingo de Páscoa.

No alto de um poste, vestido de vermelho, havia um diabo com um sorriso maligno e olhar amedrontador. Embaixo, um Judas arrependido. Não me lembro se havia uma contagem regressiva, mas, em meio a fogos, o diabo descia o mastro e montava sobre os ombros de Judas. Então ambos os bonecos se soltavam e ficavam balançando no ar por alguns segundos até que, de repente, explodiam, espalhando-se pelos ares. Posso estar enganado, mas creio que da fumaça surgia um Cristo ressuscitado e glorioso. 

A multidão em torno da praça vibrava com o traidor vingado pelo artista-fogueteiro que inventou o espetáculo. Tomávamos o caminho de volta passando por ruelas com calçadas de varvito e casarões coloniais. E, não raro, trazíamos um pedaço de Judas ou do diabo como troféu.

16 fevereiro 2013

E então os cachorros começaram a uivar


O meteoro que explodiu sobre a cidade de Chelyabinsk, na Rússia, causou ferimentos a mais de mil pessoas, segundo os jornais. A maioria provocada por vidraças que se estilhaçaram. Por sorte, ninguém morreu. Fenômenos naturais como esse acontecem diariamente, dizem os cientistas, a diferença é que os corpos celestes acabam caindo nos oceanos ou em lugares não habitados e, normalmente, têm proporções muito menores do que o siberiano, com suas sete mil toneladas.

A queda foi marcada por duas coincidências, a primeira é que a data estava reservada para a passagem de um asteroide muito próximo, em proporções astronômicas, à órbita da Terra. A segunda é que o objeto caiu na mesma região do planeta atingida pelo último grande meteoro, em 1908.

Na Rússia, por motivos de segurança e corrupção, muitos carros possuem câmeras instaladas no para-brisa, o que garantiu registros da cena absolutamente incomum. Imagino a excitação que o fenômeno causou, para o bem e para o mal.

É como se, a cada cem, duzentos anos, a providência, a natureza ou mesmo o acaso, não importa que nome tenha, nos lembrasse de que somos parte da mesma matéria que compõe o pó das estrelas, que viemos do mesmo lugar.

Em 1998 ou 99, não me lembro, eu e meus amigos vimos, do quintal da república em que morávamos em Bauru, uma chuva de meteoros. É quase impossível reproduzir as sensações que tivemos diante daquelas dezenas de estrelas cadentes velocíssimas que riscavam o céu escuro e profundo, maiores, muito maiores do que o que estamos acostumados a ver daqui, com os pés no chão.

Disse um russo em depoimento a uma rádio de Moscou reproduzido hoje pela Follha: “Estava sentado trabalhando e a janela estava levantada. Em segundos foi como se a cidade inteira tivesse sido iluminada. Olhei para fora e vi uma grande mancha brilhante no céu que durou dois, três minutos e então os cachorros começaram a uivar."

Os cães de Chelyabinsk uivaram exatamente como faziam seus ancestrais há milênios. Quando lobos e cães se juntavam a homens estarrecidos diante de bolas de fogo que cruzavam o céu e, por alguns segundos, iluminavam noites que pareciam eternas.

15 fevereiro 2013

Tarantino mais do mesmo



Há um pôster de “Pulp Fiction” na parede da minha sala. Assisti ao filme em VHS logo que foi lançado por aqui, em 1994 se não me engano. Me lembro do impacto que causou na época. Com a obra, seu diretor, Quentin Tarantino, cultuado em meios restritos, tornou-se parte daquilo que ele mais amava: a cultura pop.

Logo fui atrás de “Cães de Aluguel”, seu primeiro longa. Numa época em que não havia internet, eu buscava informações sobre ele em jornais e revistas. Fiquei feliz ao saber que um filme que eu adorava e que vivia passando na Band, “Amor à Queima Roupa”, com Patricia Arquette, fora escrito por ele. Depois de “Pulp” surgiu um novo roteiro, “Um Drink no Inferno”, filmado por Robert Rodriguez com uma participação inesquecível da Salma Hayek. Havia também um argumento, “Assassinos por Natureza”, com roteiro e direção de Oliver Stone, na época um diretor muito mais relevante do que hoje parece ser (Tarantino não aprovou o tratamento dado por Stone à sua história). E, por fim, essa primeira fase incluía um episódio muito inteligente e engraçado de “Grand Hotel”.

Todos esses filmes tinham algo em comum: a narrativa inovadora e a violência estilizada, permeada por diálogos absolutamente inesperados, com montagem esperta e inevitáveis referências pop. Depois desse boom, Tarantino, que se revelou um grande diretor e resgatador de atores, fez uma homenagem aos filmes de cineastas negros americanos do anos 70, “Jackie Brown”, que eu demoraria anos para ver.

Então ele deu um tempo. O que estaria preparando, eu pensava? Meu palpite de que preparava um cinema mais adulto e ambicioso foi frustrado quando apareceu Kill Bill. Como a minha fase de ninjas já tinha passado, recebi o filme com alguma frieza, apesar dos méritos de sempre: roteiro, tiradas, referências, direção de atores etc.

Quando surgiu “Bastardos Inglórios”, sorri para Tarantino. Me lembro da frase final do personagem de Brad Pitt: “Acho que esta é a minha obra-prima”. O uso que Tarantino fazia da história, numa leitura original e vingadora, causava surpresa mais uma vez. E ainda havia um filme anterior, “À Prova de Morte”, lançado por aqui assim que “Bastardos” arrebatou o segundo Oscar de roteiro para o autor (o primeiro foi por “Pulp Fiction”). O filme era muito bom, despretensioso e divertido.

O que viria depois? Em “Django Livre”, um ex-escravo faz justiça contra os brancos exploradores numa releitura dos faroestes. Pouco antes de ser lançado, o filme já causava polêmica. O diretor Spike Lee, também ele polêmico, disse que não o veria porque a obra desrespeitava a história de seu povo. Logo vieram os defensores de Tarantino. Para eles, a abordagem, assim como em “Bastardos”, é livre, uma leitura artística e descontraída da história. E os críticos do “politicamente correto” correm para criticar os críticos “óbvios” como Spike Lee, afinal, “Django” é apenas um filme.

AssistiDjango no último fim de semana e senti exatamente o contrário. O filme é politicamente correto, como era “Bastardos”. Em ambos os injustiçados vão à forra e promovem uma matança. E é só isso. Depois de "Kill Bill" e dos "Inglórios", a repetição é cansativa. Apesar daquelas características autorais já citadas, o roteiro já não surpreendente tanto e os diálogos são meio frouxos, mesmo com algumas cenas engraçadas. Quanto à abordagem da história, quase posso dar razão a Lee. Para os que veem patrulha na postura do cineasta negro, imagine se Tarantino, que diz que ninguém tem poder de parar o seu trabalho, resolvesse ser, de fato, politicamente incorreto e fizesse piada com um grupo de nazistas que escalpa judeus durante a Segunda Guerra ou com um senhor de escravos que, depois de explodir uma senzala com dinamite, triunfasse colocando óculos escuros e cavalgasse com a namorada branca em direção ao horizonte. Seriam apenas filmes sem implicações morais?

O politicamente correto de Tarantino expõe seu vazio. A violência gratuita de seus filmes, alvo de crítica de cineastas mais consistentes como Michael Haneke (que briga com ele pelo Oscar de roteiro este ano), comprova a estagnação de sua fórmula. Em uma entrevista publicada na Folha há algumas semanas, Tarantino falava que um cineasta deve arriscar e não ter medo do fracasso. Como devem ser os verdadeiros artistas. O problema é que seu próximo filme anunciado é a parte 3 de Kill Bill...

Espero um dia voltar a ser surpreendido por Tarantino, mas o drama é que não tenho mais dezesseis anos como em 1994. Como devo me mudar nos próximos dias, vou aproveitar para tirar o quadro da parede. Apesar do olhar dominador da Uma Thurman.

23 janeiro 2013

Hotel Excelsior


Encontrei o velho ator em um hotel também velho no centro de São Paulo. Havia algum tempo que eu precisava falar com ele. Eu temia a implacabilidade do tempo impedindo o encontro que planejava e aguardava há meses. O que me levava até lá era a curiosidade, coisa de quem pensa estar em função de uma verdade e supõe poder sugar a memória de um homem que, com quase noventa anos, estava na cidade a trabalho, fazendo talvez algo que dali a algum tempo seria escarafunchado por alguém como eu. 

É assim, alguém coloca o mundo em movimento e um outro tenta contar essa história, ação e condensação. No fim de semana, eu tinha assistido a uma peça com ele no teatro do Sesc Anchieta, onde confirmamos o encontro previamente agendado por um assessor. Nos encontraríamos dali a alguns dias. O hotel passara por uma reforma e, dentro, em nada correspondia à avenida Ipiranga de fora, nem o que eu esperava de uma hospedaria antiga como aquela. 

Fiquei algum tempo na sala de espera até que fui chamado a subir. No quarto, ele me recebeu ante uma mesa de escritório ao lado da cama e, pela cara, logo notei que estava dormindo. Expliquei-lhe em detalhes o que desejava. Ele forçou a memória até encontrar algo, um pequeno fio que puxou quase em vão, uma lembrança perdida em meio a coisas que o tempo o tinha encarregado de esquecer, mas que de algum modo persistia. 

Eu sabia que já tinha o que queria, ainda que ele lamentasse e até se desculpasse não poder me dar mais. Então perguntei sobre o projeto que levara durante anos adaptando clássicos da literatura para uma televisão recém-surgida. Ele me contou, num tom empolgado, mas sereno, como era fazer teledramaturgia ao vivo, como instigava jovens a escrever os textos, e como alguns daqueles jovens, entre os quais se enquadrava o objeto do meu estudo, como alguns daqueles jovens depois se destacaram no teatro e na televisão.

Como eu exigisse precisão, vestígios e resíduos, ele me contou, sem nostalgia, apenas com um lamento pela memória coletiva, que uma inundação tinha destruído o porão da casa onde arquivara os roteiros e recortes dos jornais daquele tempo. A memória agora era ele, que não tinha muito tempo, era um homem consciente do que se aproximava. 

Na porta do quarto, antes da despedida, ainda fiz um elogio à sua atuação na peça do fim de semana, sem me referir ao resto, de que eu não gostara. Ele agradeceu educadamente, tinha se habituado a conviver com elogios, era cortês. Perguntei o que viria a seguir e, antes de ouvir a resposta, emendei outra pergunta, querendo saber se ele voltaria a algo que eu não pude ver. Isso foi há quatro anos!, respondeu, com surpresa e alguma irritação que abalou aquela postura cavalheiresca. Não estava me informando, apenas marcando algo que, era evidente para ele, tinha ficado para trás. 

Alguns meses depois, eu estava muito longe quando soube que ele tinha morrido após um breve período de padecimento. Lamentei, não sem vergonha do contentamento de pensar que eu tinha o que queria. Logo me lembrei que, naquela tarde, enquanto caminhava pelo corredor e ele fechava a porta atrás de mim, pensei que eu não disse adeus. Naquele momento me pareceria postiço, empolado, mas sei que era a palavra certa.

'Pilatos', de Carlos Heitor Cony, simboliza o Brasil de Delfim Netto

Pilatos , romance de Carlos Heitor Cony publicado em 1974, pode ser lido como um retrato do Brasil de Delfim Netto, um dos artífices da dita...