25 junho 2013

Ideias são à prova de bala


Alan Moore sabia o que estava fazendo quando escreveu "V de Vingança" ("V for Vendetta" no original"). Ao retomar a figura histórica de Guy Fawkes, o conspirador que colocou barris de pólvora no parlamento inglês em 1605, em uma atitude que até hoje divide os ingleses, ele estava questionando o destino histórico da Inglaterra de Margareth Thatcher e alertando para os perigos de uma sociedade que caminhava para o liberalismo com extrema vigilância. 

Não por acaso, anos depois da publicação na Inglaterra em 1982, Londres se tornaria uma das cidades mais vigiadas por câmeras em todo o mundo. Não por acaso, os Estados Unidos, a nação símbolo da liberdade, se veriam embaraçados por bisbilhotar a vida privada de seus cidadãos. 

Para escrever sua distopia ilustrada por David Lloyd, Moore recorreu a inúmeras fontes, mas o que sobressai é o clássico "1984", de George Orwell que, aliás, inspirou dezenas de obras semelhantes que abordam a vigilância nos sistemas totalitários. 

O romance gráfico foi adaptado por Hollywood em 2006, o que não agradou ao anarquista Moore. Mas foi certamente a partir daí que a obra se tornou popular, o que ficaria evidente com a crise financeira de 2008. Nas manifestações que ainda tomam conta da Europa e de outros continentes há sempre dezenas de máscaras do herói "V" desafiando parlamentos e homens representativos, nem sempre de modo simbólico. 

Lembro de uma entrevista que Moore deu ao Guardian em 2011 dizendo como se sentia orgulhoso das garotas e garotos que se manifestavam sob a máscara. Na obra, com o risco de serem identificados e presos, os manifestantes formam uma massa compacta com o mesmo rosto que desafia o poder. "Por trás desta máscara há mais do que carne. Abaixo desta máscara há uma ideia, e ideias são à prova de bala".

21 junho 2013

Conversa com o tio Alonso

Meu tio Alonso anda intrigado com a minha reação diante das manifestações que tomaram as ruas do Brasil nestes dias. 

– Não era você que vivia reclamando que o povo não ia às ruas? – ele perguntou.

– Mas a coisa já está ficando sem controle.

– É quase impossível controlar a massa, os protestos são legítimos. 

Tio Alonso lutou contra a ditadura. Ele viveu na clandestinidade no período mais duro do regime, chegou a ser preso e torturado. Por isso apoia toda e qualquer manifestação popular.

– O que acha que podia acontecer se os manifestantes invadissem o Congresso ou até mesmo o Planalto, tio? 

– Provavelmente uns seriam repelidos, outros presos.

– Mas e se, num extremo, eles se vissem cara a cara com a presidenta, o que fariam? (Tio Alonso gosta muito da língua portuguesa, por isso com ele fico à vontade para usar a palavra no feminino sem sentir aquele olhar enviesado que os críticos direcionam para Dilma.)

– Não dá pra saber, mas, mesmo num ato de radicalismo extremo, a democracia seria fortalecida. 

– Sei não... E a expulsão dos militantes de partidos das passeatas?

– Esses jovens foram criados ouvindo todo mundo falar em corrupção generalizada, em falta de investimentos em saúde e educação. Também não têm educação ou formação política, são muito midiatizados. Além do mais, nossa sociedade é muito conservadora. Eles vão aprender que os partidos são apenas a organização das vozes divergentes da comunidade da qual eles fazem parte. Em sociedades como a nossa, não dá pra haver representação individual. O que é preciso é uma reforma política. 

Otimista o tio Alonso. Eu confesso que ando bastante preocupado com as manifestações totalitárias e a falta de direcionamento dos manifestantes. Tio Alonso diz pra eu não me preocupar.

- E se a repressão à violência justificar uma intervenção militar? E se vier uma ditadura? – eu insisti.

- Difícil, mas saberemos como combatê-la.

18 junho 2013

A democracia brasileira é uma criança


Havia crianças na concentração para o protesto desta segunda-feira no largo da Batata, em S. Paulo. Diante do ocorrido na semana passada, podia-se pensar que era uma irresponsabilidade, mas a sensação geral era de paz e as mães cuidavam de vestir e maquiar os filhos com as cores do Brasil. 

A polícia apenas protegia as áreas das intermináveis obras do largo para que a multidão não transformasse entulhos e material de construção em armas. Fazia o que dela se espera, garantindo a ordem pública e a liberdade de expressão. 

Os manifestantes, em sua imensa maioria estudantes, logo deixaram clara sua insatisfação com a condução da coisa pública no país. As bandeiras que flamulavam no miolo da concentração motivaram os primeiros gritos contrários aos partidos políticos. Sem polícia e sem partido, a multidão seguiu pela Faria Lima com destino incerto. 

Ouviram-se gritos contra o aumento das passagens, contra a presidenta, contra a Pec 37, contra a Rede Globo, o prefeito, José Luiz Datena e a polícia. Não houve pichação, quebradeira ou violência. E logo se notou a coincidência de não haver policiais por perto. 

Também foram distribuídos panfletos anônimos contra os gastos de dinheiro público com as copas, contra a corrupção, a favor do porte de armas, da prisão perpétua etc. etc. Centenas de cartazes ilustravam as insatisfações e lembravam episódios vergonhosos e impunes como o massacre do Carandiru. 

Tudo é do jogo, mas, se por um lado chamava a atenção o número de pessoas, estimado em cerca de 65 mil, por outro impressionava a amplitude da insatisfação. Era tamanha que não se sabia para aonde ir. E os destinos da passeata foram se dividindo em direções opostas.  

Um dos achincalhados, o comentarista político Arnaldo Jabor, tinha revisto a avaliação inicial negativa que fizera do movimento Passe Livre e, desde de manhã, louvava a causa, não sem alertar para o perigo do vazio das manifestações.

De fato, diante de tantas aspirações genéricas, a sensação é de que a coisa se esvazia, mas não se enganem. Há, sim, um grito e ele é fundamentalmente contrário à velha política. Ainda não se sabe qual é a nova. Uma coisa, porém, é certa: ela começa quando o povo vai às ruas.

03 junho 2013

O livro sobre nada

O inglês John Gledson, estudioso da obra de Machado de Assis, cita na introdução de “Papeis Avulsos” que o francês Gustave Flaubert manifestou em uma de suas centenas de cartas o desejo de escrever "um livro sobre nada". 

Aí está a sabedoria do grande escritor. Escrever um livro sobre nada deve ser a pretensão de todos os autores. A meu ver, aliás, é precisamente esse desejo que diferencia a grande literatura das demais. 

Evidentemente escrever sobre nada é uma utopia, uma "aspiração paradoxal", como observou Gledson. A palavra, sabemos, é carregada de sentidos. Mas escritores sérios buscarão, sempre, o livro sobre nada como projeto inalcançável.

Flaubertianos célebres como James Joyce chegaram perto. É conhecida a boutade do irlandês como resposta a uma mulher que lhe perguntou sobre o que era um de seus livros, não sei se “Ulisses” ou “Finnegans Wake”: “o livro não é sobre alguma coisa, minha senhora, o livro é a coisa”. 

Vargas Llosa, outro devoto do francês, mesmo tendo recebido distinções como o Nobel de literatura, diz que sua grande obra, a que deve ficar, ainda está por vir. Do que ele está falando se não do nada?

O próprio Flaubert, aliás, dizia que, se pudesse, recolheria todas as edições disponíveis em seu tempo de “Madame Bovary”, a obra que o consagrou. E não se falaria mais nisso. 

É bom que se diga que escrever sobre o nada é muito diferente de nada escrever. A aspiração de Flaubert é apenas a evidência de que, para o artista, o processo em si é mais importante do que o resultado.

'Pilatos', de Carlos Heitor Cony, simboliza o Brasil de Delfim Netto

Pilatos , romance de Carlos Heitor Cony publicado em 1974, pode ser lido como um retrato do Brasil de Delfim Netto, um dos artífices da dita...