14 abril 2011

Gerações são-paulinas

Há algumas semanas meus pais estiveram em Aracaju. Na excursão, conheceram um corintiano. Ao ver que meu pai, com seus 63 anos, é são-paulino, o mosqueteiro estranhou. Professor de história, ele quis saber das origens familiares do seu Nilton. Como muitos paulistas, temos entre os ascendentes pelo menos um italiano, no caso dele a avó. Associação imediata, o corintiano inquiriu que ele devia ser palmeirense.

Sem perder tempo, meu pai apenas lembrou de Leônidas, que brilhou no Tricolor na mesma época em que ele nasceu, a década de 1940, quando o São Paulo ganhou cinco títulos paulistas responsáveis pelo crescimento da torcida. Mas o São Paulo não nasceu com o Diamante Negro. Cresceu. Muito, é fato. O que o meu pai não disse é que o pai dele também era são-paulino. E se era, é muito provável que seja devido a uma predileção pelo Paulistano, que brilhou na década de 1920. As origens do Tricolor estão no Glorioso clube do jardim América. O professor de história poderia ter se informado melhor.

O que eu quero dizer é que há gerações de são-paulinos. E uma delas, pelo menos, é célebre. A geração de Pablo Forlán. Se o São Paulo tem a tradição de um Paulistano (“As tuas ‘glórias’ vêm do passado”), os títulos e a torcida de um Leônidas, tem a grandeza da geração de Pablo Forlán. O pai do melhor jogador da última Copa atuou no Tricolor entre o final dos anos 60 e começo da década seguinte. E foi justamente esse o período em que o São Paulo voltou a ser grande.

Porque a história Tricolor pode ser dividida em quatro partes, pelo menos: as origens paulistanas e a luta pela existência que lhe renderam a alcunha de “Clube da Fé”, a década de ouro do time de Leônidas, a parada estratégica para a construção do Morumbi e a retomada justamente nos anos 70, quando o São Paulo teve Gerson, Forlán e, principalmente, Pedro Rocha.

Forlán pai era um lateral direito mais conhecido pela raça uruguaia e pela entrega em campo do que pelas qualidades técnicas. Por isso, é um dos grandes ídolos da torcida. Tem e sempre teve uma enorme identificação com o Tricolor. Seu filho, Diego, jamais atuou no Brasil. Fez carreira na Espanha, onde há anos brilha no Atlético de Madrid. Seu auge foi a Copa da África do Sul, quando, atuando mais no meio de campo do que no ataque, foi eleito o melhor do torneio.

Agora, a diretoria do São Paulo, cumprindo a tradição de ousadia na contratação de grandes, vai atrás de Diego Forlán. Natural que ele jogue e queira jogar no São Paulo, como já declarou mais de uma vez. Afinal, é o time da família. A contratação ainda não está fechada, mas, pelo que se noticia, tem tudo para dar certo. Também pelo histórico, mesmo que a história possa nos enganar de vez em quando.

Se vier, Diego Forlán cumprirá a uma só vez três tradições tricolores: a contratação de grandes craques como Leônidas e Pedro Rocha, a raça uruguaia de jogadores como Forlán e Pedro Rocha, e o clássico jogador de ataque, que sabe tratar a bola, como Leônidas e Pedro Rocha.

A festa no Morumbi será ainda maior que a de Luís Fabiano. E a diretoria, que tem aspirações de se eternizar pelos mandatos, pode se eternizar pela montagem de mais um time brilhante, como tantos que o São Paulo montou ao longo dos seus mais de oitenta anos de tradição. 

12 abril 2011

É azul

Yuri Gagarin foi para o espaço e fez uma revelação maravilhosa. Sim, estou falando da primeira viagem espacial realizada por um homem. Volta e meia, penso nisso.


A frase vai longe, mas passou à História no exato momento em que foi dita. Hoje, falar em conquista do espaço é absurdo, mas falar em navegação espacial não é. Que o digam os pouquíssimos milionários que se enfiam numa nave rumo ao vazio. Nestes tempos de Columbias e de Discoveries, fico até um pouco entediado em acompanhar esses programas espaciais destinados a pesquisas essencialmente pragmáticas e burocráticas. Alguém pode dizer que, com tantos bilhões de dólares envolvidos, nãocomo ser diferente. Pode ser. E também, como imaginar uma viagem mística? Lembram do Contato, do filme? Eu nunca esqueço da personagem da Jodie Foster dizendo: - “Deviam ter mandado um poeta!” E o Gagarin foi poético.

Os soviéticos largaram na frente na corrida espacial. Mandaram insetos e até uma cadela para o espaço. Na minha infância, durante a década de 1980, ainda era comum encontrarmos cachorras “Laikas” em homenagem àquele mamífero pioneiro que jamais voltou a Terra. Em 1961, finalmente chegou a vez de um homem. Os americanos, na época correndo atrás dos soviéticos, obteriam seu feito histórico quase dez anos mais tarde, quando Neil Armstrong pisou a Lua. Mas, talvez tentando ser mais célebre que Gagarin, Armstrong deu o passo com uma fala pronta, retórica. Gagarin foi mais puro, porque encantado. Em pouco mais de uma hora, circundou nosso planeta e, siderado, constatou algo fantástico. Então, disse apenas o que viu, o que sentiu, o que o encantou naquele momento. A simples e bela revelação: - “A Terra é azul!”

(Escrito em 30 de novembro de 2005. Na época, foi publicado no blog “Conversas Paralelas” - http://www.entrevistos.blogspot.com/)

06 abril 2011

Feliz aniversário, Sr. McCartney

Ele acorda no meio da manhã. Ao seu lado a cama está vazia. Espia a fresta da janela. De pijama abre as cortinas. Faz sol. É o final da primavera e uma leve neblina se dissipa nos gramados do sul da Inglaterra. Mary e Stella, as filhas mais velhas, decidiram organizar uma pequena recepção para o pai em Peasmarsh. Virão apenas familiares: os filhos, os netos e seu único irmão, Michael. Também Heather Mills, de quem acabou de se divorciar. O motivo de sua vinda é Beatrice, a filha do casal, de dois anos e oito meses. O aniversário coincidiu com o dia dos pais.

Tenta não pensar no passado. Conclui que aos 64 anos a perspectiva de futuro é menor do que a memória. Pensa em Linda e em George, que há pouco se foram. Logo surgem as lembranças de John, do pai e da mãe, cujas mortes são remotas.

Hoje, porém, ele não quer nada remoto. Anseia por rever a risada de Béa. Vai reunir a família, talvez tocar para todos eles. Não espera nada além disso. Ainda no quarto, interfona para o mordomo:

- Bom dia!
- Feliz aniversário, Sr. McCartney!
- Obrigado, Joseph. Algo especial?
- Só as remessas de sempre.

Desde o começo da beatlemania o aniversário é o dia em que suas propriedades ficam abarrotadas de cartas e presentes. Os funcionários são orientados a filtrar todos os telefonemas. Se quisesse, nunca mais precisaria dizer alô.

- Talvez hoje aconteça algo diferente – diz.

Diferente. Diferente é a realidade dos 64 anos. Diferente de todos os outros anos. Diferente sobretudo da canção que escreveu há mais de quatro décadas. Sempre foi criticado por produzir letras ingênuas. Daquela vez não pensou em si mesmo aos 64, mas em um tipo qualquer, um sexagenário da classe trabalhadora inglesa. A letra surgiu naturalmente a partir de uma melodia que foi ganhando seu cérebro e ouvidos. Uma melodia antiga. Se cumprisse o destino do subúrbio onde cresceu em Allerton, Liverpool, talvez hoje estivesse num pub cantando You'll never walk alone. Ele ri da cena. Sempre teve um carinho especial pelo Everton, mesmo não ligando muito para futebol. O telefone toca. Alguém repassa uma ligação:

- Ei, cara! Enfim chegou!

Imediatamente reconhece a voz canina:

- Bom dia, Ring! – saúda, rindo.
- Não vem para Londres?
- Não. Devo ficar por aqui. A família toda reunida, sabe como é.
- Ah, sim. Nessa idade é importante aproveitar todos os momentos.

Os dois riem desbragadamente. Ringo retoma:

- E como estão as coisas?

Sabe a que o amigo se refere, mas não quer entrar num assunto ainda não resolvido.

- Vão se ajeitar.
- Tudo bem, então. Se precisar você já sabe. Paz, cara. Eu amo você. Desejo toda a felicidade, vai ficar muito tempo com a gente.
- Obrigado, Ring. Muito obrigado mesmo.

Ringo sempre ligou. Dos amigos da juventude é o único que ligaria. George quase nunca ligava nos aniversários, John também não. Tem pensado muito em John. Encontraram-se pela última vez em 1976 ou 77? Não lembra. Conversaram por telefone depois do lançamento do último disco do ex-parceiro. Então acabou. Aqueles tiros estúpidos e pronto, John era uma lembrança. As lembranças realmente importantes são quase tão vivas quanto os acontecimentos presentes. O passado sempre presente.

Decide que vai evitar o contato com Heather Mills dedicando todas as atenções para Béa e os netos - nenhuma Vera, nenhum Chuck, nenhum Dave. Desce para o café da manhã antes que as lembranças o paralisem. É saudado pelas filhas mais velhas e pelos netos. Pergunta por James. Logo o filho aparece. Se abraçam, ele se emociona. O filho sorri. É o sorriso de Linda.

Heather traz Beatrice. A menina se dá com Heather, a filha de Linda que ele adotou quando se casaram em 1969. Dois James e duas Heathers. Uma só Linda. Um só John. De repente lhe ocorre que Linda existe mais no sorriso do filho do que em suas lembranças. James nota uma melancolia que o pai mal consegue disfarçar. Ele está muito apegado a Beatrice. A menina é encantadora e o pai mantém a idéia fixa da criação. Depois do almoço tira um leve cochilo. Acorda para o chá. À noite todos se juntam no estúdio tocando velhas canções, algumas muito tristes, que ele melhora.

Bebem até tarde, até restarem somente ele e o filho no estúdio. A namorada de James aparece. A conversa flui até que os silêncios ganham mais corpo do que as palavras. A visão de James e da namorada reforça o pensamento em Linda e em Heather, no pouco tempo em que ficaram juntos. Reforça, sobretudo, a sua solidão. Ele, que cantou No more lonely nights menos como um artifício do que como um desejo verdadeiro, sente a noite solitária se aproximar mais uma vez, lá se vão 64 anos. O ar melancólico do pai permanece. Antes de o casal deixar o estúdio, James pergunta:

- Você vai ficar bem?
- Vou, não se preocupe.
- Amo você, pai. Tenha uma boa noite.
- Durma bem, meu filho.

Sozinho. Num reflexo, procura uma janela para olhar a noite, mas se lembra que o estúdio é vedado. O fim é um sentimento próximo, real, muito ao contrário do que era naqueles dias frios de Allerton. Não vai haver muitos anos a partir de agora. A longa e sinuosa estrada está chegando ao fim. A memória está quase cheia. Então ele percebe. É um bom título para uma canção ou para um disco. Quase automaticamente ele recomeça. Apanha o violão e perfaz os primeiros acordes, cantarolando os versos iniciais de Ever present past. Vai ficar assim até o amanhecer, até terminar.

(Publicado em novembro de 2009 pelo Claro!, suplemento do Jornal do Campus editado pelos alunos de jornalismo da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo.)

'Pilatos', de Carlos Heitor Cony, simboliza o Brasil de Delfim Netto

Pilatos , romance de Carlos Heitor Cony publicado em 1974, pode ser lido como um retrato do Brasil de Delfim Netto, um dos artífices da dita...