29 março 2012

O fim de uma era

Na semana passada, eu descia a Teodoro Sampaio quando levei um susto: era a livraria Iracema, que fechava ou estava de mudança. Apesar de freqüentá-la há pelo menos dez anos, desde quando ocupava outro espaço e ostentava outro nome, senti uma espécie de alívio.

Eu ainda não morava em São Paulo quando a vi pela primeira vez. Na rua Augusta, ao lado do Conjunto Nacional, havia uma livraria empoeirada, desconfortável e, acima de tudo, atemporal. Vendia edições encalhadss a preços eternamente promocionais. Na época chamava-se Livraria do Salério, se não me engano.

A sensação lá dentro, pouco antes da virada do milênio, era a de se estar num atacado dos anos 70. Entre os vendedores, pelo menos um tinha cara de Salério. Eu nunca perguntei, mas só podia ser ele. Ficava por ali, de uniforme, organizando ou espanando pilhas de livros em sua maioria velhos e intocados, relegados àquela condição tão temível para os escritores, a do encalhe. Revirando, podíamos encontrar uma edição nova, às vezes no plástico, sem marcas provocadas pela oxidação ou até mesmo por cupins, o que também não era incomum.

Além do que me interessava, havia muitos livros infantis e espíritas – os que mais saíam –, além de material de bancas de jornais, sobretudo encartes de periódicos, mapas e discos digitais. Tudo era parte da graça daquele espaço estranho. Eu me entretinha tanto garimpando livros que só fui perceber o quanto o lugar era inóspito quando, passeando com uma antiga namorada pela região, tive a péssima ideia de apresentá-la à loja. Bastaram alguns minutos para que, não suportando o deslocamento temporal, ela saísse correndo, exasperada.

Para mim era diferente. Pouco tempo depois, na época em que imigrantes chineses ainda vendiam yakisoba nos pontos de ônibus da avenida Paulista, eu me mudei para São Paulo. Saía de um trabalho na vila Olímpia e às vezes desviava o caminho de casa só para ver quais eram as novidades antigas.

Muitos dos autores que eu lia podiam ser encontrados ali. Devo a esse espaço a descoberta de J. M. Coetzee. Não tenho o livro em mãos, mas creio que foi no ano em que ele ganhou o Nobel de literatura que eu comprei aquele “Dostoiévski, o mestre de São Petersburgo”, da editora Best Seller. Também me marcaram livros que não comprei. “À espera dos bárbaros” e “A idade do ferro”, ambos do autor sul-africano, “Filho é bom, mas dura muito”, do Mário Prata, e “O mundo desde o fim”, de Antonio Cícero, foram alguns deles. Alguém vai dizer que eles podem ser facilmente encontrados em sebos, não importa o que digam, não é a mesma coisa.
           
Algum tempo depois mudei de emprego e de endereço, e o novo trabalho ficava a algumas quadras da livraria. Durou pouco: um dia, vi que a loja tinha fechado. Dias depois, meio órfão, minha alegria voltou ao notar que eles estavam reabrindo exatamente na minha rua, a duas quadras da minha nova casa. Desta vez foi rebatizada, era agora a Livraria Iracema.

O nome ficou mais literário, talvez para compensar o espaço que, provando a sabedoria que diz que tudo pode piorar, ficou ainda mais hostil. O aspecto de depósito, antes apenas insinuado, agora era evidente.

As idas ao mercado ou à padaria me obrigavam a espiar a Iracema. Durante um tempo fiquei viciado nisso. Cheguei a adquirir livros que eu sabia jamais iria ler, eu oferecia pouca resistência às promoções do tipo “leve três, pague dois”. O Salério sempre estava por perto, mas parecia subordinado a um homem calvo e grisalho que vivia diante de um computador. Também havia uma menina de olhos verdes que estudava teatro. O espaço foi admitindo novas prateleiras, agora para livros usados, as promoções foram aumentando, mas os livros, que pouco se renovavam, tinham encalhado de vez.

Assim, a Iracema encerrou suas atividades, travessou contramão. É sempre triste quando uma casa de livros chega ao termo, mas realmente senti alívio. Era o fim de uma era para nós dois. De algum modo, interpretei o fato como parte das mudanças que seriam ritualizadas dali a alguns dias, no meu aniversário.

15 março 2012

O mistério da avenida Dinamarca


Na avenida Dinamarca, no bairro de Wimbledon, em Londres, existe um asilo vizinho a uma moradia para estudantes estrangeiros. Apesar da necessidade de ambos os lados, ou seja, estudantes que precisam aprender e praticar inglês e idosos que necessitam de companhia, durante os sete meses em que vivi no endereço vi pouca interação entre as gerações.

Eu mesmo fui poucas vezes ao asilo. Hoje, entretanto, vejo como ter enfrentado a dificuldade do idioma para bater na porta daquele endereço discreto e distante como ademais me parecem os todos os ingleses foi uma das melhores coisas que fiz na Inglaterra. O que eu queria naquela tarde de um dia extremamente quente de verão era praticar meu parco inglês, mas fui agraciado com uma grata surpresa.

Quando me ofereci para ser um voluntário e manter conversas com os idosos, a mulher da recepção me aplicou uma minientrevista para somente então me encaminhar, o que levou algumas semanas, ao interlocutor correto. Como eu tinha dito que era jornalista e gostava de literatura, ela me indicou esse senhor, Terence Matthews.

Tratava-se de um septuagenário que dedicou grande parte de sua vida ao trabalho atrás do balcão de um conhecido banco europeu. Viúvo e aposentado, decidiu isolar-se naquela região do sul da capital britânica. Travamos pouco contato, menos do que talvez nós dois desejássemos. Digo isso porque em cada uma das visitas que fiz a Terry fui sempre muito bem recebido e pude sentir o quanto ele desejava que eu o freqüentasse mais. Acontece que minha reserva e meu propósito de não ser inconveniente impediram-me de, talvez, firmar a única amizade puramente inglesa que eu podia ter feito na Inglaterra.

Terry era o tipo calado, quase fleumático, mas educado o suficiente para conversarmos sobre o assunto que a secretária havia me recomendado: livros e literatura. Em duas ocasiões, com uma indiscrição que em retrospecto me causa certa vergonha, perguntei-lhe os motivos daquele retiro e quis saber sobre sua família, mas em ambas Terry recusou-se a falar desses assuntos. Na última, com um humor amargo, me disse que apenas trabalhara num banco durante a maior parte de sua vida e que seus filhos sabiam muito bem disso. Não mais insisti.

Ele conhecia o Brasil, ou melhor, conhecia algumas cidades nordestinas. Como meus pais, tinha uma boa memória de Natal, para onde viajou de férias nas décadas de 1970 e 80. A informação foi ótima para mim. Mesmo sem conhecer o Nordeste, agora eu tinha um elemento para quebrar o gelo e prosseguir com aquelas conversas que começaram de modo estranho e titubeante.

Além da vantagem da idade, Terry logo demonstrou outra sobre mim, o conhecimento de um tipo de literatura que nunca foi a minha preferida: a policial. “Venho lendo essas histórias há tanto tempo que eu já nem me lembro quando começou”, disse, com aquele uso exemplar que os ingleses fazem do present continuous.

“Também escrevi um livro”, acrescentou para a minha surpresa.

“É mesmo?”

“Publiquei-o em 1959, mas não prossegui depois”.

“Por que não?”

“Deixei-me levar pelos críticos...” Parou por um momento para logo retomar. “Há duas coisas interligadas que um verdadeiro escritor jamais deve levar em consideração: a crítica e o medo. Venci em parte a segunda, mas me deixei inibir pela primeira. Como vê, não sou um artista verdadeiro”, completou, olhando ao redor, não exatamente para o quarto.

“O senhor ainda tem o livro?”

"Gostaria de dizer que sim, mas o fato é que me livrei dos meus exemplares encalhados. Guardo o manuscrito, é claro. Foi escrito à mão. Mas as edições acho impossível encontrar."

“Ainda assim vou procurá-lo”, eu disse. “Como se chama?”

“’The Mystery of Bentinck Street’, mas desista. Não vale a pena”.

Quase acreditei nele.

Um de seus heróis literários era tão óbvio quanto inevitável, sir Arthur Conan Doyle.

“Eu devia ter me livrado dele antes de começar a escrever”, revelou. “É o que devemos fazer antes de nos submetermos à folha em branco”, disparou outro conselho.

Na estante com poucos livros daquele quarto asséptico havia um busto do personagem mais famoso de Doyle e certamente de toda a literatura policial: o detetive Sherlock Holmes. Provavelmente foi comprado no Sherlock Holmes Museum, na Baker Street, onde depois eu também compraria uma estatueta do personagem.

Perguntei se ele tinha visto o filme mais recente de Holmes, “Um jogo de Sombras”, e ele me disse que não, que já não ia ao cinema. Entretanto louvou o fato de não ser uma adaptação.

“Billy Wilder fez isso. O personagem Holmes vai além das histórias criadas por Doyle, é como o Quixote, pode-se fazer mais com eles sem desmerecer ou querer equiparar-se aos seus criadores. O Quixote, aliás, foi continuado tão logo o livro de Cervantes revelou-se bem sucedido, não foi? Wilder também fez isso, sua história de Holmes não era de Doyle, mas o personagem, sim”.

No mesmo dia em que me falou sobre seu livro, procurei referências a Terry na Internet. Nada encontrei. Também não garimpei as centenas de sebos e livrarias da cidade, muitas delas especializadas em literatura policial. Seria uma tarefa muito árdua para a minha permanência.

Entretanto, debaixo da Putney Bridge, perto de onde eu morava, havia um livreiro especializado nesse gênero. Quando falei do autor ao livreiro quase tão velho quanto Terry, ele me disse nunca ter ouvido falar de seu nome, mas recomendou, com uma esperança verdadeira mas que eu sabia inútil, que eu procurasse por ele na internet.

10 março 2012

Motos aquáticas!

A subordinação dos brasileiros a estrangeirismos é tamanha que foi preciso uma menina morta para que o principal canal de televisão do país deixasse de lado a expressão “jet ski”. 

É triste. A incorporação de palavras forasteiras é um dos mecanismos para o desenvolvimento da língua, mas a riqueza do idioma permite que tais expressões sejam traduzidas ou aportuguesadas aumentando-lhe assim o léxico. O problema é que traduzir é pensar e pensar exige conhecimento.

No tempo em que vivi no estrangeiro passei por situações esquisitas, pra não dizer vexatórias no que diz respeito a esse conhecimento. Por exemplo, vi colegas sofrendo para entender a palavra inglesa “bankruptcy” simplesmente porque desconheciam a similar expressão portuguesa “bancarrota”. Uma vez, eu mesmo me vi obrigado a calar diante da (minha, nossa) falta de tradução para a palavra “brainstorming”. 

Toda língua tem suas expressões próprias e palavras “intraduzíveis”. A inglesa “cool” é uma delas. A citação batida da portuguesa “saudade”, outra. Evidentemente isso não quer dizer que não possamos ou eles, os outros, não possam aproximar-se do real significado das palavras originais. O que me pergunto é por que utilizar expressões de outros idiomas quando temos correspondência exata no nosso.

Uma vez um espanhol, ao me explicar que seus compatriotas traduzem tudo ou quase tudo, disse que os “hot dogs” em seu país são chamados “perros calientes”. Exato: cachorros-quentes, como nós também já fizemos e como ainda é dito no interior e em certos rincões, mas claro está: “hot dog” é melhor.

O que acontece na Espanha também ocorre na Inglaterra, na França e em qualquer lugar onde a língua é respeitada e defendida. Quando há correspondência, traduzem-se nomes próprios, inclusive. O raciocino é simples: dizemos porque é nosso e, se nós não dissermos alguém dirá por nós. Pode-se argumentar que isso é típico de países colonizadores ao passo que nós, com nossa história colonizada, somos mais propensos a absorver os estrangeirismos. É uma explicação, mas não serve para justificar nossa pobreza mental que, no extremo, converte-se em mau gosto e cafonice. Observem as expressões utilizadas em reuniões executivas ou propagandeadas pelo mercado imobiliário, para citar dois casos apenas.

Não sou um purista, acho que em língua quem o é tende ao grunhido cavernoso, mas o português está aí e é tão mais belo se bem utilizado. Por que não? Pode parecer que uma coisa nada tem a ver com outra, mas reconheço que talvez eu esteja pedindo muito para um país cuja presidenta submete a agenda aos compromissos do presidente de uma federação privada, como o caso de Dilma e de Joseph Blatter.

'Pilatos', de Carlos Heitor Cony, simboliza o Brasil de Delfim Netto

Pilatos , romance de Carlos Heitor Cony publicado em 1974, pode ser lido como um retrato do Brasil de Delfim Netto, um dos artífices da dita...