11 março 2016

A peça

A solidão do gabinete e os três homens engomados trabalhando no pedido de prisão que deve entrar para a História. A cooperação amigável e a busca de referências precisas. A peça final tem que ser, antes de tudo, correta. De fato, a noção de correção deve perpassar todo o texto. Não pode haver margem para erros e contestações – quaisquer que sejam. Sobretudo as jurídicas. Então esse trio de homens sérios e honrados, esse trio que parece entalhado sente a necessidade de apontar referências morais e filosóficas, pois não basta que eles tenham, se é que têm, referências morais e filosóficas, de onde eles vêm, a matéria de que são feitos os obriga a tornar as referências, quer tenham ou não, evidentes. É preciso mostrar certa erudição, dar a ver, diriam alguns. Portanto essas referências precisam aparecer e todos eles logo concordam, todos são unânimes em um ponto: essas referências precisam ser marcantes, melhor se forem referências comuns também ao próprio executado que sirvam para lembrá-lo de sua origem ou pelo menos de coisas que no julgamento deles um dia ele, o executado, pareceu defender. O trabalho com a escrita é complexo, há um momento em que as palavras fluem e então é fácil nos empolgarmos com o desenvolvimento do texto, a coisa se erguendo de modo tão límpido, tão fácil e pensamos que bastarão alguns retoques, uma boa leitura mais tarde e estará pronto, é justamente a esses momentos que precisamos estar atentos. Os três homens, porém, se atropelam justamente naquilo que faz com que todos os homens se atropelem, a vaidade. Também têm pressa talvez, é preciso fazer isso logo não se sabe o motivo ou a motivação por trás de tudo ainda que se possa suspeitar, e também eles são três cabeças afinal seis mãos e seis olhos trabalhando, a desatenção de um pode ser o olhar acurado do outro, não há como errar. E num momento delicado da peça alguém decide retomar um momento histórico marcante e eles relembram no texto do discurso da vitória do ex-presidente e sem querer expõem nessa lembrança o medo que têm que é justamente o medo do poder da fala como ficará logo demonstrado e assim a peça segue e eles falam em “torneiro mecânico” e não percebem que a menção, a retomada numa peça dessa natureza da profissão do executado expõe certo elitismo e um preconceito que, como negar?, pode estar na base de tudo o que se passa hoje na esfera jurídica e, ainda que esse preconceito seja tantas vezes desmerecido e ridicularizado ele está, mais uma vez, escrito num pedido de prisão que denuncia o elitismo de alguém ou de uma classe que se recusa, não aceita, e isso pode estar na própria origem da peça que os três homens estão produzindo e por isso, justamente por isso, ela tem que ser também uma lição de moral e o terno se empolga e decide citar Nietzsche, logo ele, o filósofo que tradou da verdade e da mentira no sentido extra-moral e que fez a genealogia da moral e que mostrou a nossa condição demasiado humana e se esforçou para combater a ideia de Deus podia ser outro mas foi Nietzsche e parece que a simples citação de Nietzsche é infalível e automaticamente pode conferir uma estatura erudita à peça que a rigor não precisava de nada disso e agora a ele, a Nietzsche, se juntam outros elementos como o torneiro mecânico e o super-homem e  a noção de que nenhum homem é Deus e que portanto ninguém está acima da lei e tanto conhecimento, tanta coisa fluindo e colaborando e a peça ali nascendo e o lenço fino italiano tirado do bolso para limpar o suor da testa e tudo quase pronto alguém batendo o pé no chão com uma ansiedade mal disfarçada quase um nervosismo e outro com um entusiasmo quase juvenil quase irritado com o sapato do colega batendo no soalho mas com um leve sorriso de satisfação como quem diz saímos na frente e chegamos antes conseguimos e faltam apenas as assinaturas dos três e todos eles imaginando os nomes impressos no papel o papel circulando em sites e jornais os três nomes para a História e talvez por imperícia ou por afobação todos eles se esquecem que é muito fácil se empolgar com um texto e considerá-lo pronto e admirável antes do teste final um texto qualquer como este um texto pode ser tão enganoso e tudo foi tão fluido e tranquilo e eles sabem tanto do que estão falando têm tanta segurança que num erro quase dialético e quase imperdoável cometido justamente no momento em que pretendem dar a lição fundamental da peça não percebem que alguém escreveu Marx e Hegel e talvez eles tenham discutido antes e decidido pela associação errada e lido e relido depois e achado e concordado que era Hegel mesmo e não Engels e talvez eles não soubessem pois não são afinal intelectuais nem são obrigados a ler qualquer coisa fora os códigos todos e as atas e petições e processos e tudo isso já é tanta coisa tanto trabalho e nem deveriam ler mais nada mesmo são apenas representantes de uma elite bacharelesca que sempre fez peças como essa e mandou prender gente como torneiros mecânicos e não raro humilhou e torturou ou se esqueceu dessa gente na cadeia quando não matou porque antes podia matar e são essas peças que fazem o país ser o que é desde antes até do país ser um país e que pela ação desses homens e pela força do que essas peças representam e desencadeiam enfim se tornou o que agora não pode ser ameaçado nem por uma fala desse cara vai que o cara fala e mobiliza esse povo todo e um deles o mais obscuro dos três limpa um pequeno filete de gel que escorre discretamente do cabelo e reclama do ar condicionado do gabinete e fica quase sem graça quando percebe que nenhum dos outros dois prestava atenção a ele tão concentrados estavam na peça e agora essa mesma peça diante da qual os três quase relincham de felicidade também dá indícios de que o país nunca deixará de ser o que é e talvez esses homens nunca venham a saber a diferença entre filósofos e quem se importa num país onde o magistrado é tido como sábio mesmo que faça selfies com a camisa da seleção e quem sabe afinal quem é Engels ou Hegel e Nietzsche e talvez eles apenas tenham confundido os nomes parecidos como acontece com todo mundo e já é um mérito eles não terem errado ao escrever Nietzsche e é difícil mesmo aqui várias vezes Nietzsche Nietzsche Nietzsche e não se sabe se por lapso ou por ignorância a confusão dá margem a tudo e quando a peça finalmente é terminada e distribuída ela é quase instantaneamente desautorizada pela comunidade jurídica mas nesse país escrito por peças do gênero essa mesma peça ainda pode ser validada diante da propensão dos nossos juízes de camisas pretas que lembram outras camisas pretas e que são elas também essas camisas peças de mau gosto e diante da peça pronta os três relinchando de satisfação o que se lê e o que salta aos olhos é a confusão entre Engels e Hegel e o pior é a piada o escárnio a esculhambação diante de uma peça que deveria ser séria e foi um lapso normal pensam no seu íntimo todos eles e o mais orgulhoso chega a pensar com raiva em ler todo o Hegel que nunca leu apenas para encontrar uma passagem que transforme em acerto o erro que ele pensa vai marcá-lo pelo resto da vida e a reviravolta será uma lição a esses néscios que só sabem detonar e demolir tudo e que não respeitam a Justiça e no mais íntimo cada um dos três pensa em como os outros dois são idiotas e tudo isso apenas denuncia a formação dos nossos homens ilustres tidos como ilustrados e contribui para a nossa ignorância e para o obscurantismo em que estamos atolados todos nós eu você Moe Moro Larry Lula Engels Aedes Aécio Nietzsche Dilma Curly Fernando Henrique Hegel Cassio Brutus José Carlos Efeagacê e os Emepês paneleiros crianças sem merenda recém-nascidos com microcefalia e mais os que saíram e também os que ainda serão eliminados do Big Brother Brasil, coitados.

'Pilatos', de Carlos Heitor Cony, simboliza o Brasil de Delfim Netto

Pilatos , romance de Carlos Heitor Cony publicado em 1974, pode ser lido como um retrato do Brasil de Delfim Netto, um dos artífices da dita...