02 março 2021

Nelson Rodrigues e Guimarães Rosa (1)


    Vivendo num Rio de Janeiro pra lá de literário e tendo muitos amigos em comum, é surpreendente que Nelson Rodrigues e Guimarães Rosa jamais tenham se encontrado. Alguém que conheça minimamente suas obras pode argumentar que faz sentido, pois eles não podiam ser mais diferentes e, num extremo, quase opostos. Enquanto o primeiro era incrivelmente urbano (ou suburbano), o outro não podia ser mais sertanejo.

    Mas mesmo a distância, como a flor de obsessão que era, Nelson Rodrigues nunca deixou de acompanhar os movimentos do autor mineiro. Com sua ótica peculiar, tentava entender sua importância e contribuição. 

    Rosa aparece com frequência nas crônicas reunidas em O Óbvio Ululante. Em um episódio incrivelmente sarcástico e revelador, Nelson conta ter visto o escritor andando na rua. “De cara empinada, as duas mãos cruzadas nas costas, ele é o Guimarães Rosa em fremente lua-de-mel com Guimarães Rosa. A gente tem vontade de pedir-lhe: 'Seja Guimarães Rosa com mais naturalidade'”.

    Mas foi no romance Asfalto Selvagem, agora relançado pela Harper Collins, que o autor de Vestido de Noiva pôde dar vazão aos seus comentários mais ácidos (ou lúcidos) sobre Rosa. Nesse folhetim, publicado entre 1959 e 1960 no jornal carioca Última Hora (no auge, portanto da consagração de Rosa), uma admiração contida caminha ao lado de muita desconfiança e implicância com o autor de Grande Sertão: Veredas.

    Como observaria Carlos Heitor Cony em crônica de 2001, em toda sua obra, notadamente nas crônicas, mas especialmente em Asfalto Selvagem, Nelson atribui comentários, ideias e pensamentos seus a interlocutores claramente identificados.

    Ali, apesar de o romance exaltar as virtudes estilísticas de uma obra monumental, Rosa é encarado com sentimentos diversos que vão da plácida reserva a uma impaciência furiosa, com boas doses de ironia e constante inquietação. Os comentários são ácidos. Na primeira evocação, um personagem retruca apressadamente um conselho: "- O Guimarães Rosa quer que todo mundo faça pirâmide e não biscoito. Mas o que é a obra do Guimarães Rosa senão uma pirâmide de confeitaria?"

    Mais adiante, num diálogo precisamente localizado em um automóvel em movimento, um dos personagens acena para a "relação entre o sexo e a epopeia industrial". O outro concorda, exultante: "- Batata! E o que faz o romance brasileiro que não vê isso? A nossa ficção é cega para o cio nacional! Por exemplo: não há, na obra de Guimarães Rosa, uma só curra!" 

    Como disse o poeta José Lino Grünewald, "era lapidar a intuição conceitual de Nelson". Mais exemplos de Asfalto Selvagem: 

    "- O Guimarães Rosa é pura excitação verbal. O sujeito é ouvinte do seu texto e não leitor. Mas, a partir da trigésima página, sentimos um irremediável tédio auditivo. Grande Sertão: Veredas torna-se uma audição para surdos”. 

    "- Guimarães Rosa pode ser um gênio. Mas é a maior monotonia verbal de todos os tempos. Dirá você que é um problema de acomodação auditiva. Mas, das duas, uma: ou o sujeito aceita o Guimarães Rosa e repudia os outros; ou prefere os outros e chuta o Guimarães Rosa”.

    Anos depois da publicação do folhetim, quando Rosa morreu, em 1967, Nelson Rodrigues publicava suas "confissões" em O Globo. Insuflado pelo golpe e pela ditadura, com as crônicas ele intensificava a face mais assumidamente reacionária de sua produção.

    Uma seleção dessas “primeiras confissões” foi reunida em O Óbvio Ululante, cuja primeira edição saiu no fatídico ano de 1968. No livro, percebe-se que as dúvidas de Nelson em relação a Rosa não acabaram. Por outro lado, é notável como sua admiração pelo autor cresceu.

    As primeiras crônicas saíram à época da morte de Rosa. Nelas, Nelson procura investigar aspectos da vida e da obra do mineiro. Interessa o grande escritor, o estilista, a perenidade de seus textos e, inevitavelmente, o que ela tinha de acaciano.

    Como é de se esperar, ele não faz nenhuma análise profunda do texto rosiano, mas a intuição inigualável resulta em comentários superficiais apenas na aparência, que na realidade se revelam precisos e ajudam a entender a admiração restritiva que tinha por Rosa. 

    Num dos textos, ele narra um encontro com um dos muitos amigos que tinha em comum, o psicanalista Hélio Pelegrino. Ali, eles juntam dúvidas e preparam um encontro. Dias depois, surpreso, o dramaturgo comenta a morte súbita do autor, acometido por um enfarte fulminante: 

    “A morte de Guimarães Rosa tocou meu íntimo e inconfesso pântano”, escreve. “Vivo, ele nos agredia e humilhava com a sua monumental presença literária. E súbito, num domingo, morria Guimarães Rosa. A notícia deu-me um alívio, uma brusca e vil euforia. É fácil admirar, sem ressentimento, um gênio morto. Já tínhamos um Machado de Assis. Guimarães Rosa seria outro Machado de Assis. Claro que os demais continuavam vivíssimos, atropelando. Mas esses não fundaram uma língua, nem escreveram ‘A terceira margem do rio’”. 

    Com sua honestidade habitual, a admiração em Nelson Rodrigues não é desvinculada da vaidade e da inveja. A morte precoce foi ainda pretexto para que o cronista tratasse de um de seus temas favoritos.

    “Não acredito no medo da morte que, a meu ver, ninguém tem. Há inversamente, em todos nós, a nostalgia da morte. Também não acredito no medo de Guimarães Rosa. Nem a morte foi uma visita. Há muito tempo os dois se entendiam. E o escritor chegou a datá-la. Pode-se dizer que havia uma convivência e que ele se tornara íntimo da própria morte”.

    Carlos Heitor Cony, também ele personagem das confissões, aparece numa crônica afirmando categoricamente que Guimarães Rosa era “o novo Coelho Neto”. Diante da comparação, Nelson Rodrigues dissimula um espanto incontido. “E o resto? Que diabo! A linguagem!”. E Cony, no que Nelson chamou de “revisão crítica de calçada”, retruca: - “A linguagem quem faz é o povo”. Quando Reynaldo Jardim se junta aos dois e ataca Rosa como “falsário da linguagem”, Nelson conclui: “súbito, fui varado por uma dessas certezas inapeláveis, fatais: - Guimarães Rosa era o único gênio de nossa literatura”.

Nelson Rodrigues e Guimarães Rosa (2)

    O elogio ao gênio de Guimarães Rosa não poderia ser maior vindo de crítico tão ferino. Para que seja compreendido, é bom que se tenha em mente a famigerada sentença rodrigueana que assevera que “toda unanimidade é burra”.
 
    Como que para confirmá-la, Nelson Rodrigues se alegra ao encontrar detratores ou mesmo restrições à obra de Rosa. Poucos dias depois da morte do romancista, outro amigo em comum entre eles, o também escritor Otto Lara Resende, escreve a Nelson de Portugal. O dramaturgo faz suspense para si mesmo antes de ler. A opinião de Otto era muito importante para ele. Nelson já havia confessado sua insatisfação quando o amigo, em um programa de tevê, chamou João Guimarães Rosa de genial. Depois de ler a correspondência, ele se entristece. “Em toda a sua carta, o Guimarães Rosa é apenas o grande homem. O ficcionista está solene, hierático, como um mordomo de filme”. 

    Em outra crônica, Nelson explicaria melhor o motivo da alegria diante das restrições: “Eis o meu pânico: - que aqui se instalasse, em torno de sua figura e do seu nome, a unanimidade. Meu Deus, o formidável artista não podia virar um Pacheco. Nem teríamos o direito de erigir-lhe uma estátua do ‘Brasil chorando o gênio’. Era preciso que algum pardal desgarrado sujasse, liricamente, a sua testa de bronze”.

    Mais adiante, continua: 

    “Ninguém fez, que eu saiba, o grande elogio de Guimarães Rosa, ou seja, o elogio de sua torre de marfim. Vou usar uma expressão de minhas crônicas esportivas: - a ‘torre de marfim’, em Guimarães Rosa, é o óbvio ululante. Foi por vezes acaciano? Ai daquele que não teve o seu momento de Acácio. E confesso: - tenho medo, não dos que negam Guimarães Rosa, mas dos que o admiram. Há um certo tipo de admiração que compromete ao infinito”.

    Como se vê, a admiração do dramaturgo só cresceu com a morte de Rosa. É tentador imaginar que belas crônicas o esperado encontro não teria rendido. Nelson Rodrigues gostava de revelar detalhes de conversas e encontros com outros autores em suas confissões. E nesse caso, então, que trataria de autores tão diversos temática, psicológica e até mesmo intelectualmente? 

    Enquanto Guimarães Rosa se esmerava em falar de conflitos metafísicos vividos por personagens muitas vezes elevados, habitantes do sertão mítico que ele criou, Nelson Rodrigues colocava em cena personagens suburbanos vencidos por toda a sorte de comportamentos sórdidos. 

    A diferença também era nítida em relação à postura de cada um diante da escrita. Enquanto Rosa desaconselhava aos escritores dedicarem-se ao jornalismo, Nelson, além de dramaturgo, era um prolífero cronista e autor de inúmeros folhetins, gênero por si só considerado menor. Enquanto Rosa era um intelectual refinado e um poliglota, Nelson era tido como um intuitivo, até mesmo ignorante. E fazia questão de alimentar a fama. Em uma de suas tiradas mais deslumbrantes, nega possuir uma vasta cultura literária ao dizer ter lido apenas Dostoiévski. O interlocutor, um intelectual que leu centenas de livros "mais áridos que três desertos", pergunta: "- Só Dostoiévski?". E Nelson Responde: "- Só Dostoiévski".

    A fatalidade, no entanto, impediu que Nelson Rodrigues e Guimarães Rosa se conhecessem. No dia seguinte ao encontro com Nelson em que Hélio Pelegrino ficou de apresentá-los, Rosa morreu.

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