Vivendo num Rio de Janeiro pra lá de literário e tendo muitos amigos em comum, é surpreendente que Nelson Rodrigues e Guimarães Rosa jamais tenham se encontrado. Alguém que conheça minimamente suas obras pode argumentar que faz sentido, pois eles não podiam ser mais diferentes e, num extremo, quase opostos. Enquanto o primeiro era incrivelmente urbano (ou suburbano), o outro não podia ser mais sertanejo.
Mas mesmo a distância, como a flor de obsessão que era, Nelson Rodrigues nunca deixou de acompanhar os movimentos do autor mineiro. Com sua ótica peculiar, tentava entender sua importância e contribuição.
Rosa aparece com frequência nas crônicas reunidas em O Óbvio Ululante. Em um episódio incrivelmente sarcástico e revelador, Nelson conta ter visto o escritor andando na rua. “De cara empinada, as duas mãos cruzadas nas costas, ele é o Guimarães Rosa em fremente lua-de-mel com Guimarães Rosa. A gente tem vontade de pedir-lhe: 'Seja Guimarães Rosa com mais naturalidade'”.
Como observaria Carlos Heitor Cony em crônica de 2001, em toda sua obra, notadamente nas crônicas, mas especialmente em Asfalto Selvagem, Nelson atribui comentários, ideias e pensamentos seus a interlocutores claramente identificados.
Mais adiante, num diálogo precisamente localizado em um automóvel em movimento, um dos personagens acena para a "relação entre o sexo e a epopeia industrial". O outro concorda, exultante: "- Batata! E o que faz o romance brasileiro que não vê isso? A nossa ficção é cega para o cio nacional! Por exemplo: não há, na obra de Guimarães Rosa, uma só curra!"
Como disse o poeta José Lino Grünewald, "era lapidar a intuição conceitual de Nelson". Mais exemplos de Asfalto Selvagem:
"- O Guimarães Rosa é pura excitação verbal. O sujeito é ouvinte do seu texto e não leitor. Mas, a partir da trigésima página, sentimos um irremediável tédio auditivo. Grande Sertão: Veredas torna-se uma audição para surdos”.
"- Guimarães Rosa pode ser um gênio. Mas é a maior monotonia verbal de todos os tempos. Dirá você que é um problema de acomodação auditiva. Mas, das duas, uma: ou o sujeito aceita o Guimarães Rosa e repudia os outros; ou prefere os outros e chuta o Guimarães Rosa”.
Anos depois da publicação do folhetim, quando Rosa morreu, em 1967, Nelson Rodrigues publicava suas "confissões" em O Globo. Insuflado pelo golpe e pela ditadura, com as crônicas ele intensificava a face mais assumidamente reacionária de sua produção.
Uma seleção dessas “primeiras confissões” foi reunida em O Óbvio Ululante, cuja primeira edição saiu no fatídico ano de 1968. No livro, percebe-se que as dúvidas de Nelson em relação a Rosa não acabaram. Por outro lado, é notável como sua admiração pelo autor cresceu.
As primeiras crônicas saíram à época da morte de Rosa. Nelas, Nelson procura investigar aspectos da vida e da obra do mineiro. Interessa o grande escritor, o estilista, a perenidade de seus textos e, inevitavelmente, o que ela tinha de acaciano.
Como é de se esperar, ele não faz nenhuma análise profunda do texto rosiano, mas a intuição inigualável resulta em comentários superficiais apenas na aparência, que na realidade se revelam precisos e ajudam a entender a admiração restritiva que tinha por Rosa.
Num dos textos, ele narra um encontro com um dos muitos amigos que tinha em comum, o psicanalista Hélio Pelegrino. Ali, eles juntam dúvidas e preparam um encontro. Dias depois, surpreso, o dramaturgo comenta a morte súbita do autor, acometido por um enfarte fulminante:
“A morte de Guimarães Rosa tocou meu íntimo e inconfesso pântano”, escreve. “Vivo, ele nos agredia e humilhava com a sua monumental presença literária. E súbito, num domingo, morria Guimarães Rosa. A notícia deu-me um alívio, uma brusca e vil euforia. É fácil admirar, sem ressentimento, um gênio morto. Já tínhamos um Machado de Assis. Guimarães Rosa seria outro Machado de Assis. Claro que os demais continuavam vivíssimos, atropelando. Mas esses não fundaram uma língua, nem escreveram ‘A terceira margem do rio’”.
Com sua honestidade habitual, a admiração em Nelson Rodrigues não é desvinculada da vaidade e da inveja. A morte precoce foi ainda pretexto para que o cronista tratasse de um de seus temas favoritos.
“Não acredito no medo da morte que, a meu ver, ninguém tem. Há inversamente, em todos nós, a nostalgia da morte. Também não acredito no medo de Guimarães Rosa. Nem a morte foi uma visita. Há muito tempo os dois se entendiam. E o escritor chegou a datá-la. Pode-se dizer que havia uma convivência e que ele se tornara íntimo da própria morte”.
Carlos Heitor Cony, também ele personagem das confissões, aparece numa crônica afirmando categoricamente que Guimarães Rosa era “o novo Coelho Neto”. Diante da comparação, Nelson Rodrigues dissimula um espanto incontido. “E o resto? Que diabo! A linguagem!”. E Cony, no que Nelson chamou de “revisão crítica de calçada”, retruca: - “A linguagem quem faz é o povo”. Quando Reynaldo Jardim se junta aos dois e ataca Rosa como “falsário da linguagem”, Nelson conclui: “súbito, fui varado por uma dessas certezas inapeláveis, fatais: - Guimarães Rosa era o único gênio de nossa literatura”.