23 janeiro 2013

Hotel Excelsior


Encontrei o velho ator em um hotel também velho no centro de São Paulo. Havia algum tempo que eu precisava falar com ele. Eu temia a implacabilidade do tempo impedindo o encontro que planejava e aguardava há meses. O que me levava até lá era a curiosidade, coisa de quem pensa estar em função de uma verdade e supõe poder sugar a memória de um homem que, com quase noventa anos, estava na cidade a trabalho, fazendo talvez algo que dali a algum tempo seria escarafunchado por alguém como eu. 

É assim, alguém coloca o mundo em movimento e um outro tenta contar essa história, ação e condensação. No fim de semana, eu tinha assistido a uma peça com ele no teatro do Sesc Anchieta, onde confirmamos o encontro previamente agendado por um assessor. Nos encontraríamos dali a alguns dias. O hotel passara por uma reforma e, dentro, em nada correspondia à avenida Ipiranga de fora, nem o que eu esperava de uma hospedaria antiga como aquela. 

Fiquei algum tempo na sala de espera até que fui chamado a subir. No quarto, ele me recebeu ante uma mesa de escritório ao lado da cama e, pela cara, logo notei que estava dormindo. Expliquei-lhe em detalhes o que desejava. Ele forçou a memória até encontrar algo, um pequeno fio que puxou quase em vão, uma lembrança perdida em meio a coisas que o tempo o tinha encarregado de esquecer, mas que de algum modo persistia. 

Eu sabia que já tinha o que queria, ainda que ele lamentasse e até se desculpasse não poder me dar mais. Então perguntei sobre o projeto que levara durante anos adaptando clássicos da literatura para uma televisão recém-surgida. Ele me contou, num tom empolgado, mas sereno, como era fazer teledramaturgia ao vivo, como instigava jovens a escrever os textos, e como alguns daqueles jovens, entre os quais se enquadrava o objeto do meu estudo, como alguns daqueles jovens depois se destacaram no teatro e na televisão.

Como eu exigisse precisão, vestígios e resíduos, ele me contou, sem nostalgia, apenas com um lamento pela memória coletiva, que uma inundação tinha destruído o porão da casa onde arquivara os roteiros e recortes dos jornais daquele tempo. A memória agora era ele, que não tinha muito tempo, era um homem consciente do que se aproximava. 

Na porta do quarto, antes da despedida, ainda fiz um elogio à sua atuação na peça do fim de semana, sem me referir ao resto, de que eu não gostara. Ele agradeceu educadamente, tinha se habituado a conviver com elogios, era cortês. Perguntei o que viria a seguir e, antes de ouvir a resposta, emendei outra pergunta, querendo saber se ele voltaria a algo que eu não pude ver. Isso foi há quatro anos!, respondeu, com surpresa e alguma irritação que abalou aquela postura cavalheiresca. Não estava me informando, apenas marcando algo que, era evidente para ele, tinha ficado para trás. 

Alguns meses depois, eu estava muito longe quando soube que ele tinha morrido após um breve período de padecimento. Lamentei, não sem vergonha do contentamento de pensar que eu tinha o que queria. Logo me lembrei que, naquela tarde, enquanto caminhava pelo corredor e ele fechava a porta atrás de mim, pensei que eu não disse adeus. Naquele momento me pareceria postiço, empolado, mas sei que era a palavra certa.

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Pilatos , romance de Carlos Heitor Cony publicado em 1974, pode ser lido como um retrato do Brasil de Delfim Netto, um dos artífices da dita...