21 abril 2014

Os nazarenos de Sevilha



Na Semana Santa Sevilha cheira a incenso. Estamos na terra dos nazarenos, penitentes encapuzados que há séculos, nessa época, realizam procissões até a imensa catedral da cidade andaluza.

Domingo de Ramos, caminhando ao acaso pela tradicional região de Macarena, encontrei pessoas com hábitos azuis e brancos, os rostos encobertos por máscaras cônicas. Não fosse o sol do meio-dia e eu diria que inspiravam medo. Decidi segui-las. Logo dobramos uma esquina e nos vimos diante da modesta Igreja de Nossa Senhora de Hiniesta, padroeira do ajuntamento.

Àquela hora havia uma pequena aglomeração esperando pela procissão na praça ao lado. Também havia um sem-número de nazarenos. Eram homens, mulheres e crianças da ordem de Hiniesta. Representavam o Cristo da Boa Morte.

Juntei-me a eles e a outros turistas. Aos poucos foram chegando mais e mais nazarenos, muitos com sandálias e alguns descalços, em penitência. Também o uso do capuz é um sacrifício. Sentado ao pé da cruz conversei com o senhor Francisco, el viejo. Hoje com setenta e quatro anos, ele contou que dos quatro aos vinte e cinco foi penitente. Desde então assiste aos cortejos. “É uma coisa muito antiga, que nos toca o coração quando somos jovens”, disse, batendo no peito. O pai dele também foi nazareno. E provavelmente o avô e o bisavô e outros ancestrais.

De fato, no Alcázar de Sevilha, o palácio que foi dos mouros e que ainda é a casa da família real espanhola na cidade, há uma tela sem data que retrata a chegada dos nazarenos à catedral em algum momento do século XVIII.

Um dos assistentes que trazia um broche da ordem na lapela disse que os nazarenos do Cristo da Boa Morte surgiram em 1560. Ele não soube explicar por que em algum momento as marchas foram interrompidas, mas disse que a partir de 1829 foram retomadas ininterruptamente.

Então surgiu uma banda militar anunciando a procissão. A bateria ditava o ritmo com um toque regular e fúnebre. Quando da porta da igreja despontaram os primeiros nazarenos com estandartes e velas, um naipe de metais começou a entoar uma música triunfal, quase gloriosa.


As crianças pediam caramelos aos romeiros e o público aplaudia a passagem dos estandartes. Acompanhei os penitentes por um trecho. Depois tentei cortar caminho até a região da catedral, onde o transito estava interditado parcialmente para a passagem dos cortejos e para a assistência ilustre da cidade. Foi impossível. O centro de Sevilha estava tomado por nazarenos brancos, negros e púrpura. Alguns com cruzes, outros com andores, todos com estandartes.

Os andores representando Cristo, Nossa Senhora e outros personagens dos evangelhos inspiravam devoção e respeito. Nas passagens mais delicadas pelas ruas estreitas, as complicadas manobras evolutivas eram embaladas pela melodia dos metais e, uma vez concluídas, aplaudidas pelo público emocionado, quase transido.

Quando finalmente consegui chegar ao albergue meus pés, pouco acostumados às ruas de pedra, estavam em frangalhos. Coloquei-os para cima e dormi. Depois saí. Por volta de meia-noite as ruas continuavam tomadas por nazarenos e turistas entusiasmados.


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