31 agosto 2011

Uma sessão em Paris

Uma vez em fiz a eleição dos melhores lugares e épocas para se viver. Venceu o Rio do fim dos anos 1950, deixando a Paris do entre guerras em segundo lugar. Me lembro que Nova York figurava em qualquer década do século passado mas sinceramente agora já não sei por que motivo. E o que mais me surpreendeu é que a São Paulo do começo dos anos 2000 até aqui foi classificada entre as primeiras. Compartilhei essas eleições com bons amigos e verifiquei que as cinco primeiras pouco variavam. Foi bom porque também pude verificar que sei quem são meus amigos.

Quando eu saí do Brasil em junho queria muito ver o novo filme do Woody Allen, “À Meia-Noite em Paris”. Melissa me contou que se situava justamente naquele período, quando a “lost generation” fincou raízes na cidade. Ela ainda falou que havia uma cena em que o protagonista sugeria ao jovem Luís Buñuel o argumento para aquele que viria a ser um de seus principais filmes, “O Anjo Exterminador”.

Eu me deliciava imaginando como Allen utilizaria o pano de fundo numa trama. Em Londres, porém, o filme não estava mais em cartaz. Com o acaso ao meu lado, fui para Paris há algumas semanas e, claro, encontrei uma sala exibindo o novo Allen.

Não era de surpreender. Paris é uma das cidades com maior número de salas de cinema no mundo. E a maioria delas fica na rua, em endereços e espaços discretos que exibem, com áudio original, filmes das mais diversas cinematografias. Caminhando pela cidade, eu vi cartazes anunciando “All About Eve”, de Joseph Mankiewicz (“A Malvada” no Brasil) e “Le Bal”, de Ettore Scola (“O Baile”), para ficar em apenas dois exemplos.

Entrei naquele cinema da rue Mouffetard um pouco cedo, e tive de esperar a proximidade da sessão para comprar o ingresso. Belo filme, o diretor escolheu um dos períodos mais férteis do século passado para intercalar com os dias de hoje, quando um jovem escritor estadunidense decide viver em Paris para escrever o seu romance. Quem conhece essa história sabe como é quase impossível andar por Paris sem desejar um grande romance. O protagonista, Gil, é o mesmo e velho alter ego de Allen, e o ator, o comediante Owen Wilson, soube muito bem interpretá-lo. Claro que com Allen no papel a história seria outra.

Não vou falar da trama que, a rigor, não importa. O que vale é descobrir que Paris, como qualquer lugar, é bom em qualquer época. Óbvio, mas o óbvio precisa ser dito. Se dito em forma de arte, tanto melhor. Por isso a São Paulo em que eu vivia figurava na minha lista.

Comprei o ingresso e esperava na antessala quando, num inglês quase tão precário quanto o meu, o projecionista disse para eu ir para a sala pois ele ia iniciar a projeção. Era a hora. Além de mim, o cinema tinha apenas as figuras de Hemingway, Fitzgerald, Gertrude Stein, Picasso, Man Ray, Buñuel, Dalí...

14 agosto 2011

Lando


Conheci muito pouco o meu avô paterno, o suficiente para me lembrar bem dele. Morreu quando eu tinha quatro anos e ainda posso vê-lo sentado no chão de um corredor para brincar com os netos.

Orlando de Arruda foi o primeiro filho homem de um total de sete irmãos. Tem uma irmã mais velha que ajudou a mãe a criar os mais novos depois que o pai morreu. Os demais iam trabalhar. Assim ele se tornou metalúrgico, trabalhando nas oficinas da Estrada de Ferro Sorocabana. A função era ajustador de motores. Conhecia o trabalho e suas ferramentas ao ponto de tornar-se chefe de seção. Como muitos colegas, aproveitava os restos da fundição para tornear instrumentos e utensílios domésticos. Alguns desses objetos estão até hoje na casa dos meus pais em Sorocaba, como um descaroçador de azeitonas e um cinzeiro de pouco mais de meio metro, exatamente da altura do braço da poltrona de couro onde se sentava para fumar.

Vestia camisas e caças de linho costuradas pela mulher. No cinto, um estojo para os óculos de aros grossos. Cabelo aparado à máquina e um bigodinho dos anos 40. Durante as refeições sentava-se numa das pontas da mesa numa cadeira vermelha que não podia ser trocada. Depois do almoço, um cigarro e a sesta. Na cama, gostava de cantar para os netos.

Montar em burro brabo é a minha paixão
Não encontro macho que jogue eu no chão
Pra jogar um laço eu também sou do bom
Em qualquer rodeio eu sou campeão
Ai! Como é bom viver 

Também me lembro dos passeios pelo bairro no Além-linha. Havia uma casa com uma amoreira onde ele gostava de apanhar os frutos para mim e minha irmã. Também me deu um Porsche de brinquedo e um burrinho que, movido a corda, coiceava brabo como na canção do Tonico e Tinoco. Ainda ganhei uma pá de pedreiro bem pequena e um martelo bola cujo cabo um dia eu quebrei mas substitui logo em seguida.

Gosto dessas ferramentas e do seu significado. Gosto das ferramentas e dos pequenos utensílios que ele fazia ou trocava com amigos na Sorocabana, como o número 741 que até hoje indica a casa construída com o auxílio do irmão Rubens na rua Mascarenhas Camelo.

Ele já estava aposentado quando meu pai foi para a faculdade. Para pagar os estudos do filho comprou uma banca de jornais onde trabalhou por mais algum tempo.

Um dia, eu não entendi porque tive de dormir na casa de um vizinho. Meus pais me deixaram lá sem explicação, pelo menos eu não me lembro. Dias depois compreendi que meu avô tinha morrido. Ele sofreu durante algum tempo com um câncer no intestino até que finalmente se foi com apenas 62 anos.

Deixou, além da mulher, dois filhos e três netos, que depois viriam a ser quatro no total. Por causa da sua história e das histórias que ele repassou para o meu pai, é impossível eu pensar em trens e ferrovias sem me lembrar. Hoje eu caminhei um pouco à margem da linha aqui em Londres. No passeio público, entre o fundo das casas e as linhas de trem, floresciam pés de amora.

11 agosto 2011

Obscuro objeto do desejo

Costumo brincar que sou um homem do século XIX. Sempre gostei de livros e de jornais em seus formatos tradicionais. Vivo comprando livros usados ou novos, leio muitos, outros não, vendo, troco, doo, guardo cadernos inteiros ou recortes de jornais durante anos e depois jogo fora, me perco em meio a papeizinhos com anotações diversas e por aí vai. Por isso, quando cheguei aqui, fui correndo procurar uma livraria.

Antes, no metrô, eu tinha visto os meus primeiros Ipads e Kindles, uma visão empolgante que até hoje me deixa maravilhado. No Tube, como os londrinos chamam o metrô, eles usam celulares e smartphones para acessar a internet, falar e mandar mensagens o tempo todo. Claro está que eles também lêem muito. Normalmente bestsellers e jornais como o centenário e gratuito Evening Standard, muito concorrido nas principais estações no fim do expediente. Eles lêem e deixam sobre os bancos ao sair, como um presente para o próximo passageiro. Eu, por exemplo, já lamento quando entro no vagão e não encontro um jornal.

No meu segundo dia, entrei numa livraria na Tottenhan Court Road, onde fui descobrindo as edições originais ou traduzidas dos autores que conheço. Duas coisas logo me chamaram a atenção: a meticulosa classificação dos romances (“Ficção de A a Z”, “Clássicos”, “Bestsellers”, “Crime e Mistério” e “Ficção Científica”) e as edições das obras propriamente. Ao contrário do Brasil, onde comprar um título de um Philip Roth, por exemplo, pode ser tão caro quanto um jantar com a namorada, por aqui a maioria das edições são em brochura (paperback), e o papel tem a qualidade do papel-jornal. Os livros, que custam quase sempre £ 7,99 (algo em torno de 25 reais) são feitos para serem lidos em qualquer lugar, e não para serem cultuados e guardados como objetos de desejo. Se você quiser um acabamento melhor, vai ter de procurar uma edição de capa dura (hardback ou hardcover). Existe, mas não é tão comum na ficção geral e nos clássicos. São mais freqüentes nos lançamentos de grandes autores e em edições comemorativas. Já os principais bestsellers e muitos dos livros de crime normalmente são encontrados nas duas versões, o que dá a dimensão de como são obras colecionáveis.

É muito bom ver que os livros não têm tanto glamour. Assim, o Philip Roth, o Vargas Llosa, o Dickens ou qualquer outro autor sério é simplesmente tratado como mais um autor sério e, talvez por isso mesmo, acessível: sucucedem-se as reimpressões. Nesse contexto, é interessante notar a sedução do livro digital. Diferente do Brasil, onde o mercado do livro barato (sinônimo de livro de bolso) está crescendo somente agora, aqui eles já têm um mercado mais do que consolidado de edições baratas (não só de bolso). Isso tudo, fenômeno do desenvolvimento, justifica a ascensão do livro e dos leitores digitais. Já que as edições em paperback são muito próximas do descartável, por que ocupar tanto espaço nas estantes quando se pode ter versões digitais e ainda mais baratas? Eu, particularmente, não acredito no fim do livro impresso nem a longo prazo, como também não creio no fim do jornal, mas fica cada vez mais evidente que tanto um como outro terão um escoamento bem diferente daqui a algumas décadas.

Mas, como o animal do século XIX que sou, no dia seguinte encontrei outra livraria na Oxford Street, onde procurei cuidadosamente um livro que combinasse uma série de exigências: uma história curta, já que meu inglês exigiria muito tempo de leitura, uma edição barata que pudesse ser manuseada facilmente em qualquer lugar e um clássico da literatura de língua inglesa. Depois de alguma hesitação, pequei um “Daisy Miller”, do Henry James, por duas libras. No caixa, expliquei para o excêntrico vendedor que aquele era o meu primeiro livro em inglês. A reação foi espontânea. Ele abriu um grande sorriso, pegou o livro e o beijou, antes de me desejar boa sorte. E o gesto me revelou uma longa e duradoura relação.

'Pilatos', de Carlos Heitor Cony, simboliza o Brasil de Delfim Netto

Pilatos , romance de Carlos Heitor Cony publicado em 1974, pode ser lido como um retrato do Brasil de Delfim Netto, um dos artífices da dita...