11 novembro 2012

Philip Roth sai de cena


Toda geração tem os seus escritores "assíduos". São autores que estão em toda parte, às vezes antes e além da obra. Você abre o jornal ou a revista, liga a tevê, entra na internet e lá estão eles. Normalmente, não se abalam com as aparições, não têm dúvidas sobre o trabalho que desenvolvem e a divulgação desse trabalho pela mídia. 

Quem não se lembra de Saramago, de sua presença obsessiva? Outro frequente é Philip Roth, pelo menos até agora. O americano, por muitos considerado um dos maiores autores da atualidade, não se furtava a falar de sua escrita. E foi em uma entrevista para uma publicação relativamente desconhecida fora da França que ele anunciou a sua aposentadoria. O autor de "O Complexo de Portnoy", "A Marca Humana" e outros clássicos modernos disse ter terminado com a escrita de ficção. A notícia foi traduzida por um site americano e divulgada no New York Times com a confirmação de um executivo da editora de Roth.

O autor, nos últimos anos sempre cotado para receber o Nobel de Literatura, agora se retira, dizendo que passou os últimos anos relendo sua produção, com o que se sentiu satisfeito, já que dedicou a vida à atividade literária, estudando, lendo e escrevendo. A ideia de continuar, porém, lhe parece insuportável. Assim, "Nêmesis", de 2010 (no Brasil saiu em 2011), torna-se seu último trabalho na área.

Chama a atenção, além do evidente espanto por saber que Roth não vai mais produzir, a luz que o autor lança sobre a vontade e a profissão de escritor. A palavra "insuportável", usada por ele para se referir à ideia de voltar a lutar com a escrita de ficção, é determinante. Roth jamais foi o tipo de escritor escravizado pela carreira e tampouco um best seller dependente da continuidade de uma fórmula ou da aspiração do mercado.

Aos 79 anos, simplesmente acabou. É o suficiente para ele e também deve ser para nós, leitores. Por que haveríamos de pedir mais? Algum crítico pode dizer que a decisão é tardia diante das últimas novelas de Roth, que nos últimos anos vinha produzindo muito e de forma aparentemente apressada, o que de algum modo já era uma antecipação. 

Nada disso importa, se quem encerra a trajetória luminosa é o próprio autor, antes de ser levado definitivamente. Vai tornar-se um fantasma, sim, ao sair de cena. Deixa para leitores e escritores uma contribuição assombrosa.

(Foto: Divulgação/Cia das Letras)

15 outubro 2012

Uma lembrança do interior


Em sua primeira aula para aquela turma da quinta série, o professor Vannucchi começou nos pedindo um resumo. Poderíamos escolher o livro. Optei por uma edição da Coleção Vaga-lume, famosa na época. A tarefa deveria ser feita em quatro páginas, o que assustou a todos. Parecia pouco. Um livro, ele nos disse, podia ser resumido em poucos parágrafos, em uma única frase ou simplesmente em uma palavra, se quiséssemos.

Eu não entendia como. Em casa minha mãe discordava. Ela, que também dava aulas naquela escola, admiradora da língua portuguesa que era, torceu o nariz para a ideia. Não sei se fui bem ou mal no resumo, mas eu o entreguei conforme o pedido. Seu Vannucchi nos fazia ler em voz alta. Sentados, podíamos ler as lições de Domingos Paschoal Cegalla em conjunto. Em pé, diante da sala, a escolha ficava ao nosso critério, mas não podíamos errar. Um gaguejo ou um titubeio e a leitura era interrompida. Voltávamos constrangidos para as nossas carteiras.

A escola era uma das mais tradicionais da cidade, famosa pela qualidade de seu ensino público. Tínhamos bons professores, que educaram gerações de sorocabanos. José Duarte Vannucchi era um dos mais respeitados, tinha um ar austero, mas era um homem pacato e sereno. Vestia o mesmo modelo de roupas: calças de linho de cor escura, camisa de mangas curtas, quase sempre branca, e sapatos. Usava óculos de aros grossos que tinham saído de moda, mas voltariam nos dias de hoje. E sempre carregava uma pasta, na certa com suas aulas e os trabalhos dos alunos.

Ele era um senhor de meia idade na época. Com meus onze anos eu o via como um velho. E o respeitava. Meu pai dizia que ele pertencia a uma família importante da cidade. Seu irmão, Aldo, era diretor da Faculdade de Ciências e Letras, que depois se transformaria na Universidade de Sorocaba, e um de seus parentes próximos, talvez um sobrinho, se tornou um mártir da luta contra a ditadura depois de morrer torturado nos porões do DOI-CODI. Hoje, o Diretório Central dos Estudantes da USP, onde estudou e militou, leva o nome de Alexandre Vannucchi Leme.

Não sabíamos de nada, nem poderíamos. Éramos crianças entrando na adolescência. Seu Vannucchi sabia muito bem, por isso nos incentivava a criar jogos de palavras-cruzadas. Sempre a palavra. Um dos alunos inventava o jogo e toda a sala concorria durante alguns minutos até alguém solucionar o problema. Quem completasse primeiro o tabuleiro ganhava um ponto positivo na nota. Eu nunca ganhei pontos com as cruzadinhas, me saía melhor nas leituras diante da turma, mas nunca me esqueço do dia em que criei o meu jogo e o submeti à classe. Sem artificialismos, sem deslumbramento, seu Vannucchi nos fazia gostar da palavra.

Um dia nos pediu atenção:

- Anotem o nome de um dos maiores poetas da língua portuguesa.

Então escreveu no quadro: “Olavo Brás Martins dos Guimarães Bilac”. Seu Vannucchi leu um ou outro poema do parnasiano que se perdeu na minha memória, mas nunca me esqueço daquele nome e, mais do que isso, daquele gesto que expôs a veneração de um homem que eu mesmo admirava.

Língua Portuguesa nem era a minha matéria preferida. Eu gostava mais de História; o português vinha na seqüência, mas eu tinha muito carinho pelo seu Vannucchi. Era o tipo de professor que exercia controle sobre a sala com a autoridade que possuía, inibindo os alunos dispostos à algazarra.

Minha disposição era outra. Algumas vezes passei diante da casa em que o professor morava na rua da Penha. Numa das aulas, seu Vannucchi tinha falado de sua biblioteca. Impressionou a todos com a quantidade de livros que possuía: cerca de cinco mil. Não queria se exibir, apenas mostrar a importância da leitura. Atrás da mureta, eu tentava divisar aquelas estantes através da janela.

Gostávamos de ouvi-lo falar sobre leituras e sobre a língua. Ecoava as palavras do meu pai quando falava da importância dos dicionários. Chamava a nossa atenção para coisas do nosso cotidiano. A palavra “misto”, de misto quente ou frio, deveria ser grafada com “s” e não com “x”, como era comum nas lanchonetes que começávamos a frequentar na cidade. O próprio nome do colégio também estava errado. A “Escola Estadual de Primeiro e Segundo Grau Dr. Júlio Prestes de Albuquerque”, nome que nos dava tanto trabalho nos cabeçalhos de provas, deveria ser “de primeiro e segundo graus”, de acordo com a concordância.

Durante dois dos sete anos em que estudei no “Estadão” ele me ensinou língua portuguesa. Depois de formado e vivendo longe da cidade meu pai cuida de me aproximar de Sorocaba e de minhas origens. Volto para a casa em que fui criado e noto as mudanças na escrivaninha que meus pais um dia me deram. Passei muito tempo sobre o tampo, desenhando, lendo e escrevendo. Agora os patamares são ocupados pelas coisas do meu pai: recortes de jornal, contas, papéis e a velha máquina de escrever Olivetti, modelo Lettera 22, onde até hoje ele me escreve recados e instruções sobre como realizar determinadas tarefas. Há bem pouco tempo, entre os recortes, ainda havia artigos sobre língua portuguesa que o seu Vannucchi publicava no jornal “Cruzeiro do Sul”.

O carinho do meu pai me reaproximava do velho professor. Quanto mais longe, mais eu volto para a Sorocaba daquele tempo e sei que nada vai voltar. Hoje, durante o almoço, a conversa com colegas nos levou a falar sobre “polidactilia”, anomalia que causa a formação de outros dedos além dos cinco em membros dos seres-humanos. Então a memória me lançou para a quinta série e me lembrou do Atanásio, que nasceu com seis dedos em cada mão. Ele era o personagem de um poema de Drummond que figurava na nossa gramática. A ilustração, hoje eu reconheço pelo traço, era do Ziraldo. Comentei sobre o Atanásio na mesa.

- Como você se lembra disso? – alguém perguntou.
- Eu me lembro de tudo – respondi, para desviar a conversa.

Daria muito trabalho dizer como eu me lembro do seu Vannucchi, dos meus pais e das coisas de Sorocaba.

(Essa crônica foi escrita há alguns anos, quando o seu Vannucchi ainda era vivo. Vai aqui, com ligeiras alterações, em homenagem aos professores, especialmente aos meus pais.)

07 junho 2012

Farewell Ray Bradbury



Quando cheguei na Inglaterra há um ano eu tratei de procurar alguns livros que sempre quis ler e não tinham tradução para o português ou não eram encontrados no Brasil. Um deles era de Ray Bradbury, autor de clássicos de ficção científica. Mesmo lá, em Londres, foi difícil encontrar uma edição do “Zen in the Art of Writing”, que, aliás, logo seria lançado por aqui.

O livro foi encomendado pela internet no site de uma grande livraria do Reino Unido. Demoraram algum tempo para encontrá-lo, a edição estava indisponível no país, prometeram para dali em breve, atrasaram algumas semanas, se desculparam pelo atraso, mas um dia, enfim, uma edição de bolso, americana como o autor, chegou naquela casa de Wimbledon. O que posso dizer é que Ray Bradbury me acompanhou durante quase todo o período em que vivi na Inglaterra no ano passado. Na prova final do meu curso, quando deveríamos entregar uma resenha de um livro, escrevi sobre aqueles ensaios do autor de “Fahrenheit 451”.

Agora vejo que Bradbury morreu nesta quarta-feira, aos 91 anos, em Los Angeles. Lamento não ter a resenha comigo. Sou grato ao autor pela companhia e ensinamentos naqueles meses de retiro. Suas palavras foram determinantes para o que viria a seguir. Elas me fizeram ver que tudo está em nós, na nossa história, e ela é sempre fantástica. Mais, me fizeram ver que com trabalho e determinação as coisas acontecem e, acontecendo, determinam outros acontecimentos que proporcionam novos trabalhos, uma coisa ligada à outra.

Eu não sou o único. Com suas dezenas de livros, Bradbury inspirou muita gente e, sobretudo, transformou muita gente. De minha parte, posso dizer, apenas, obrigado. Adeus, escritor.

09 maio 2012

Kafka no futebol



Tenho acompanhado com algum distanciamento, mas com muito interesse, o chamado “caso Oscar”. Para quem não sabe, trata-se do jogador atualmente no Internacional, mas envolvido em um imbróglio judicial com o São Paulo, clube que o revelou. Depois de passar 50 dias sem jogar, ele voltou a campo no último domingo e marcou um gol que poderia ter sido a sua redenção. Poderia.

O problema é que ontem a Confederação Brasileira de Futebol reafirmou o vínculo do jogador com o clube paulista, o que, teoricamente, torna inviável sua atuação pelo clube gaúcho. E assim tem sido desde que o jogador perdeu, em segunda instância, a ação que movia contra o São Paulo, em março desde ano. Formalmente, o que teria movido o meia a processar o ex-clube seriam atrasos no pagamento de salários.

Acontece, porém, que, ao que tudo indica, teria havido uma pressão do empresário do jogador para que ele deixasse o tricolor visando uma transferência para um clube europeu. Não deu certo e ele foi jogar no colorado. Há quem diga que houve até incentivo do São Paulo no caso, temendo que Oscar pudesse reforçar um de seus grandes rivais da capital.

Desde então Oscar ganhou em primeira instância, perdeu na segunda, foi impedido de jogar porque a sentença judicial restabelece o vínculo com o São Paulo, tentou em vão emplacar recursos, obteve um habeas corpus no Tribunal Superior do Trabalho, voltou a atuar pelo Inter no último domingo e marcou o gol do empate diante do Caxias, mas foi novamente impedido de jogar porque o habeas corpus nada diz sobre o fim do contrato com o São Paulo.

E Oscar, digo, o indivíduo Oscar? A trajetória do jogador de apenas vinte anos é a parábola kafkiana da alienação do homem comum diante de forças maiores e que ele desconhece. Tudo isso aplicado, é claro, ao mundo do futebol. Menino, como tantos outros, foi jogar num grande clube. O São Paulo, por sua vez, sempre resguardou das investidas de agentes externos um futuro que poderia ser brilhante. O plano, entretanto, não funcionou e Oscar saiu por influência do empresário. Este, não conseguindo a negociação esperada, firmou um contrato para que Oscar continuasse atuando no Brasil.

O São Paulo, maquiavélico e demagogo, pressiona de um lado. O Inter, dissimulado e fingindo-se de sonso desde o começo, pressiona de outro. O suposto responsável por toda essa situação, o empresário, não aparece, e ninguém vai ouvir a tenebrosa figura. E Oscar, sempre compelido por forças externas e sem uma determinação pessoal clara, vive dias de obscuridade.

O caso expõe de maneira exemplar as fissuras do futebol que, a rigor, são as rachaduras da sociedade. O destino de um homem simples, alienado, diante de instituições inatingíveis, confrontado com todo um aparato que envolve confederações riquíssimas e poderosas, grandes clubes que exploram seus patrimônios (estrutura, torcidas e troféus) em benefício do caso e de seus interesses, agentes externos (empresários e leis malfeitas que os beneficiam), justiça lenta e inábil e uma mídia no mais das vezes superficial e tendenciosa.

Assim, marionete de um pequeno aparelho formado por empresários, assessores e advogados, Oscar vai se distanciando da redenção e da glória, daquele futuro de brilho que ainda parece estar a ele reservado. E o pior é que, na fragilidade do menino que somente agora começa a vida adulta, parece não haver espaço para a gana de se afirmar com o caso. Corre o risco de fenecer, como um Joseph K. do futebol. Desaparecer. Como um cão.

29 março 2012

O fim de uma era

Na semana passada, eu descia a Teodoro Sampaio quando levei um susto: era a livraria Iracema, que fechava ou estava de mudança. Apesar de freqüentá-la há pelo menos dez anos, desde quando ocupava outro espaço e ostentava outro nome, senti uma espécie de alívio.

Eu ainda não morava em São Paulo quando a vi pela primeira vez. Na rua Augusta, ao lado do Conjunto Nacional, havia uma livraria empoeirada, desconfortável e, acima de tudo, atemporal. Vendia edições encalhadss a preços eternamente promocionais. Na época chamava-se Livraria do Salério, se não me engano.

A sensação lá dentro, pouco antes da virada do milênio, era a de se estar num atacado dos anos 70. Entre os vendedores, pelo menos um tinha cara de Salério. Eu nunca perguntei, mas só podia ser ele. Ficava por ali, de uniforme, organizando ou espanando pilhas de livros em sua maioria velhos e intocados, relegados àquela condição tão temível para os escritores, a do encalhe. Revirando, podíamos encontrar uma edição nova, às vezes no plástico, sem marcas provocadas pela oxidação ou até mesmo por cupins, o que também não era incomum.

Além do que me interessava, havia muitos livros infantis e espíritas – os que mais saíam –, além de material de bancas de jornais, sobretudo encartes de periódicos, mapas e discos digitais. Tudo era parte da graça daquele espaço estranho. Eu me entretinha tanto garimpando livros que só fui perceber o quanto o lugar era inóspito quando, passeando com uma antiga namorada pela região, tive a péssima ideia de apresentá-la à loja. Bastaram alguns minutos para que, não suportando o deslocamento temporal, ela saísse correndo, exasperada.

Para mim era diferente. Pouco tempo depois, na época em que imigrantes chineses ainda vendiam yakisoba nos pontos de ônibus da avenida Paulista, eu me mudei para São Paulo. Saía de um trabalho na vila Olímpia e às vezes desviava o caminho de casa só para ver quais eram as novidades antigas.

Muitos dos autores que eu lia podiam ser encontrados ali. Devo a esse espaço a descoberta de J. M. Coetzee. Não tenho o livro em mãos, mas creio que foi no ano em que ele ganhou o Nobel de literatura que eu comprei aquele “Dostoiévski, o mestre de São Petersburgo”, da editora Best Seller. Também me marcaram livros que não comprei. “À espera dos bárbaros” e “A idade do ferro”, ambos do autor sul-africano, “Filho é bom, mas dura muito”, do Mário Prata, e “O mundo desde o fim”, de Antonio Cícero, foram alguns deles. Alguém vai dizer que eles podem ser facilmente encontrados em sebos, não importa o que digam, não é a mesma coisa.
           
Algum tempo depois mudei de emprego e de endereço, e o novo trabalho ficava a algumas quadras da livraria. Durou pouco: um dia, vi que a loja tinha fechado. Dias depois, meio órfão, minha alegria voltou ao notar que eles estavam reabrindo exatamente na minha rua, a duas quadras da minha nova casa. Desta vez foi rebatizada, era agora a Livraria Iracema.

O nome ficou mais literário, talvez para compensar o espaço que, provando a sabedoria que diz que tudo pode piorar, ficou ainda mais hostil. O aspecto de depósito, antes apenas insinuado, agora era evidente.

As idas ao mercado ou à padaria me obrigavam a espiar a Iracema. Durante um tempo fiquei viciado nisso. Cheguei a adquirir livros que eu sabia jamais iria ler, eu oferecia pouca resistência às promoções do tipo “leve três, pague dois”. O Salério sempre estava por perto, mas parecia subordinado a um homem calvo e grisalho que vivia diante de um computador. Também havia uma menina de olhos verdes que estudava teatro. O espaço foi admitindo novas prateleiras, agora para livros usados, as promoções foram aumentando, mas os livros, que pouco se renovavam, tinham encalhado de vez.

Assim, a Iracema encerrou suas atividades, travessou contramão. É sempre triste quando uma casa de livros chega ao termo, mas realmente senti alívio. Era o fim de uma era para nós dois. De algum modo, interpretei o fato como parte das mudanças que seriam ritualizadas dali a alguns dias, no meu aniversário.

15 março 2012

O mistério da avenida Dinamarca


Na avenida Dinamarca, no bairro de Wimbledon, em Londres, existe um asilo vizinho a uma moradia para estudantes estrangeiros. Apesar da necessidade de ambos os lados, ou seja, estudantes que precisam aprender e praticar inglês e idosos que necessitam de companhia, durante os sete meses em que vivi no endereço vi pouca interação entre as gerações.

Eu mesmo fui poucas vezes ao asilo. Hoje, entretanto, vejo como ter enfrentado a dificuldade do idioma para bater na porta daquele endereço discreto e distante como ademais me parecem os todos os ingleses foi uma das melhores coisas que fiz na Inglaterra. O que eu queria naquela tarde de um dia extremamente quente de verão era praticar meu parco inglês, mas fui agraciado com uma grata surpresa.

Quando me ofereci para ser um voluntário e manter conversas com os idosos, a mulher da recepção me aplicou uma minientrevista para somente então me encaminhar, o que levou algumas semanas, ao interlocutor correto. Como eu tinha dito que era jornalista e gostava de literatura, ela me indicou esse senhor, Terence Matthews.

Tratava-se de um septuagenário que dedicou grande parte de sua vida ao trabalho atrás do balcão de um conhecido banco europeu. Viúvo e aposentado, decidiu isolar-se naquela região do sul da capital britânica. Travamos pouco contato, menos do que talvez nós dois desejássemos. Digo isso porque em cada uma das visitas que fiz a Terry fui sempre muito bem recebido e pude sentir o quanto ele desejava que eu o freqüentasse mais. Acontece que minha reserva e meu propósito de não ser inconveniente impediram-me de, talvez, firmar a única amizade puramente inglesa que eu podia ter feito na Inglaterra.

Terry era o tipo calado, quase fleumático, mas educado o suficiente para conversarmos sobre o assunto que a secretária havia me recomendado: livros e literatura. Em duas ocasiões, com uma indiscrição que em retrospecto me causa certa vergonha, perguntei-lhe os motivos daquele retiro e quis saber sobre sua família, mas em ambas Terry recusou-se a falar desses assuntos. Na última, com um humor amargo, me disse que apenas trabalhara num banco durante a maior parte de sua vida e que seus filhos sabiam muito bem disso. Não mais insisti.

Ele conhecia o Brasil, ou melhor, conhecia algumas cidades nordestinas. Como meus pais, tinha uma boa memória de Natal, para onde viajou de férias nas décadas de 1970 e 80. A informação foi ótima para mim. Mesmo sem conhecer o Nordeste, agora eu tinha um elemento para quebrar o gelo e prosseguir com aquelas conversas que começaram de modo estranho e titubeante.

Além da vantagem da idade, Terry logo demonstrou outra sobre mim, o conhecimento de um tipo de literatura que nunca foi a minha preferida: a policial. “Venho lendo essas histórias há tanto tempo que eu já nem me lembro quando começou”, disse, com aquele uso exemplar que os ingleses fazem do present continuous.

“Também escrevi um livro”, acrescentou para a minha surpresa.

“É mesmo?”

“Publiquei-o em 1959, mas não prossegui depois”.

“Por que não?”

“Deixei-me levar pelos críticos...” Parou por um momento para logo retomar. “Há duas coisas interligadas que um verdadeiro escritor jamais deve levar em consideração: a crítica e o medo. Venci em parte a segunda, mas me deixei inibir pela primeira. Como vê, não sou um artista verdadeiro”, completou, olhando ao redor, não exatamente para o quarto.

“O senhor ainda tem o livro?”

"Gostaria de dizer que sim, mas o fato é que me livrei dos meus exemplares encalhados. Guardo o manuscrito, é claro. Foi escrito à mão. Mas as edições acho impossível encontrar."

“Ainda assim vou procurá-lo”, eu disse. “Como se chama?”

“’The Mystery of Bentinck Street’, mas desista. Não vale a pena”.

Quase acreditei nele.

Um de seus heróis literários era tão óbvio quanto inevitável, sir Arthur Conan Doyle.

“Eu devia ter me livrado dele antes de começar a escrever”, revelou. “É o que devemos fazer antes de nos submetermos à folha em branco”, disparou outro conselho.

Na estante com poucos livros daquele quarto asséptico havia um busto do personagem mais famoso de Doyle e certamente de toda a literatura policial: o detetive Sherlock Holmes. Provavelmente foi comprado no Sherlock Holmes Museum, na Baker Street, onde depois eu também compraria uma estatueta do personagem.

Perguntei se ele tinha visto o filme mais recente de Holmes, “Um jogo de Sombras”, e ele me disse que não, que já não ia ao cinema. Entretanto louvou o fato de não ser uma adaptação.

“Billy Wilder fez isso. O personagem Holmes vai além das histórias criadas por Doyle, é como o Quixote, pode-se fazer mais com eles sem desmerecer ou querer equiparar-se aos seus criadores. O Quixote, aliás, foi continuado tão logo o livro de Cervantes revelou-se bem sucedido, não foi? Wilder também fez isso, sua história de Holmes não era de Doyle, mas o personagem, sim”.

No mesmo dia em que me falou sobre seu livro, procurei referências a Terry na Internet. Nada encontrei. Também não garimpei as centenas de sebos e livrarias da cidade, muitas delas especializadas em literatura policial. Seria uma tarefa muito árdua para a minha permanência.

Entretanto, debaixo da Putney Bridge, perto de onde eu morava, havia um livreiro especializado nesse gênero. Quando falei do autor ao livreiro quase tão velho quanto Terry, ele me disse nunca ter ouvido falar de seu nome, mas recomendou, com uma esperança verdadeira mas que eu sabia inútil, que eu procurasse por ele na internet.

10 março 2012

Motos aquáticas!

A subordinação dos brasileiros a estrangeirismos é tamanha que foi preciso uma menina morta para que o principal canal de televisão do país deixasse de lado a expressão “jet ski”. 

É triste. A incorporação de palavras forasteiras é um dos mecanismos para o desenvolvimento da língua, mas a riqueza do idioma permite que tais expressões sejam traduzidas ou aportuguesadas aumentando-lhe assim o léxico. O problema é que traduzir é pensar e pensar exige conhecimento.

No tempo em que vivi no estrangeiro passei por situações esquisitas, pra não dizer vexatórias no que diz respeito a esse conhecimento. Por exemplo, vi colegas sofrendo para entender a palavra inglesa “bankruptcy” simplesmente porque desconheciam a similar expressão portuguesa “bancarrota”. Uma vez, eu mesmo me vi obrigado a calar diante da (minha, nossa) falta de tradução para a palavra “brainstorming”. 

Toda língua tem suas expressões próprias e palavras “intraduzíveis”. A inglesa “cool” é uma delas. A citação batida da portuguesa “saudade”, outra. Evidentemente isso não quer dizer que não possamos ou eles, os outros, não possam aproximar-se do real significado das palavras originais. O que me pergunto é por que utilizar expressões de outros idiomas quando temos correspondência exata no nosso.

Uma vez um espanhol, ao me explicar que seus compatriotas traduzem tudo ou quase tudo, disse que os “hot dogs” em seu país são chamados “perros calientes”. Exato: cachorros-quentes, como nós também já fizemos e como ainda é dito no interior e em certos rincões, mas claro está: “hot dog” é melhor.

O que acontece na Espanha também ocorre na Inglaterra, na França e em qualquer lugar onde a língua é respeitada e defendida. Quando há correspondência, traduzem-se nomes próprios, inclusive. O raciocino é simples: dizemos porque é nosso e, se nós não dissermos alguém dirá por nós. Pode-se argumentar que isso é típico de países colonizadores ao passo que nós, com nossa história colonizada, somos mais propensos a absorver os estrangeirismos. É uma explicação, mas não serve para justificar nossa pobreza mental que, no extremo, converte-se em mau gosto e cafonice. Observem as expressões utilizadas em reuniões executivas ou propagandeadas pelo mercado imobiliário, para citar dois casos apenas.

Não sou um purista, acho que em língua quem o é tende ao grunhido cavernoso, mas o português está aí e é tão mais belo se bem utilizado. Por que não? Pode parecer que uma coisa nada tem a ver com outra, mas reconheço que talvez eu esteja pedindo muito para um país cuja presidenta submete a agenda aos compromissos do presidente de uma federação privada, como o caso de Dilma e de Joseph Blatter.

'Galera' ou a evocação do avô

          "Galera" é um livro que evoca a figura do avô, morto há muitos anos, e as impressões por ele deixadas na vida do narrado...