18 junho 2011

Um trem daqui a cem anos

Quando eu era criança eu gostava de assistir a uma série de tevê norte-americana chamada Amazing Stories. Quem tem trinta e poucos ou mais deve se lembrar. Passava na Globo tarde da noite. Perdi vários episódios por causa do horário. Eram contos fantásticos situados no interior dos Estados Unidos.

Me lembro especialmente de um deles, em que uma família compra uma casa. Quando o pai vai visitar o filho, o velho fica preocupado porque a construção supostamente estaria sobre os trilhos de uma extinta linha de trem. A tensão aumenta quando o velho começa a dizer que um trem que ele perdera no passado estaria a caminho para buscá-lo. A preocupação do velho é com a iminente destruição da casa, já que o trem atropelaria tudo o que estivesse em sua frente. A preocupação da família é com a saúde mental do idoso. O homem e sua esposa, é claro, não acreditam nele. O único que confia nas palavras do velho é o neto, orgulhoso e impressionado com o avô. O final é previsível, mas belíssimo, com o trem invadindo a casa para resgatar aquele passageiro atrasado.

Nessa mesma época, todo fim de semana minha família costumava ir para Itu, onde moravam meus avós maternos. Minha alegria era imensa ao encontrar o meu avô, Benedito Galera, figura que me impressionava tanto quanto o velho da história. Claro que na época eu não fazia essa associação. Ainda bem. Gostava do meu avô pelo que ele era, pelo que ele me fazia e me contava. Havia sábados, entretanto, que chegávamos e não o encontrávamos. Logo sabíamos que ele tinha ido a Boituva visitar o seu pai quase centenário. 

Eu já não sei de onde partimos, se de Itu ou de Sorocaba. Tenho quase certeza que foi de Sorocaba. O fato é que uma vez minha irmã, uma amiga de infância dela, eu e meu avô fomos para Boituva, de trem. Também não consigo me lembrar se já andara de trem, muito provavelmente sim, mas aquele era um passeio com o meu avô, e isso já tornava a viagem única. Andar de trem era demorado, por isso levamos lanche. Creio que fomos a pé da estação em Boituva até a casa do meu bisavô, Laudelino Galera, onde ficamos algum tempo. Almoçamos lá? Não me lembro. Havia um certo constrangimento naquela casa pobre de Boituva. Tudo era diferente da casa onde eu vivia. Não éramos ricos, mas podíamos notar as diferenças. Creio que, sendo criança, eu teria memória de um almoço na casa do meu bisavô, coisa que não tenho.

Na volta, à espera do trem, brincávamos no jardim em torno da estação quando eu perdi um dente. Nada grave. Eu já estava com o dente de leite solto, mole, prestes a cair. Me lembro que eu estava girando num poste de luz quando me dei conta: o dente tinha desaparecido. Ainda fiquei um tempo olhando o jardim, na tentativa inútil de encontrá-lo. Não mais.

Ah, sim, agora eu me lembro. Tomamos um trem em Itu até Sorocaba e de lá fomos para Boituva. Não havia trens ligando as duas cidades. Tanto tempo... Nunca esqueço da minha mãe perguntado como foi a viagem. E meu avô: "ah, foi tranquila, mas o Vinicius pedia toda hora para o maquinista parar o trem para que ele pudesse contar os dormentes..."

Hoje, aqui em Londres, eu encontrei um box com aquelas amazing stories. Fui assistir e justamente o primeiro episódio era a história do trem. O problema é que o filme foi dirigido pelo Steven Spielberg. Quem viu um filme do Spielberg na infância vai entender do que estou falando. Na cena em que o trem invade a casa, o velho fica numa alegria triunfante. Então ele vai se despedir do neto e, ao abraçar a criança, diz: "vejo você daqui a cem anos". Na hora me vieram as lembranças do seu Galera. Fiquei com os olhos marejados. Ele pegou o seu trem em 1994, mas até hoje, volta e meia, ressurge como uma história, uma lição ou uma gargalhada. 

Tanta coisa para dizer, principalmente para perguntar. Cem anos é muito tempo, mas depois disso teremos todo o tempo que precisarmos.

E trens, eu sei, têm sempre um destino certo.

14 junho 2011

Olhe para trás com raiva

Há anos, eu li em algum lugar que uma casa de Londres ostentava uma pequena placa dizendo que ali vivera o grande James Joyce. O artigo ressaltava que, ainda que por um curto período, a casa fora habitada pelo autor de Ulisses e, por isso, era digna de referência.

De fato, os londrinos têm o hábito de referenciar os lugares da cidade onde viveram homens notórios. Logo no meu primeiro dia na cidade, eu caminhava pela região central quando, por acaso, deparei com uma casa onde viveu Simón Bolívar. A mesma desde o século XVIII. Construção e memória preservadas. Fiquei impressionado.

Quando eu era adolescente, eu gostava muito de uma banda inglesa, o Oasis. Eu cantava e traduzia um dos hits, “Don’t look back in anger”, sem saber que, como muita coisa do Oasis, a letra fazia referência a uma peça, “Look back in anger”.

Ontem, a caminho da minha aula, eu descobri que passava pela rua onde nasceu o autor da peça, John Osbourne. A Crookham Road (foto acima) é uma via tranqüila de Fulham, o bairro onde estudo. A casa  fica a cerca de vinte metros da escola. Osbourne foi um autor iconoclasta que questionou a imensa tradição inglesa. Traduzida como “olhe para trás com raiva”, essa peça de inspiração autobiográfica acabaria marcando o teatro inglês ao retratar a geração do pós-guerra, que crescia sem esperança numa sociedade conservadora.

A tradição liberal inglesa engloba artistas e políticos questionadores. E mesmo que suas criações e aspirações se voltem contra a sociedade em que viveram, eles poderão ser sempre lembrados. Com uma discrição típica.

'Pilatos', de Carlos Heitor Cony, simboliza o Brasil de Delfim Netto

Pilatos , romance de Carlos Heitor Cony publicado em 1974, pode ser lido como um retrato do Brasil de Delfim Netto, um dos artífices da dita...