30 novembro 2014

Um pequeno Shakespeare que falava ao menino que existe dentro de nós

Ainda envolvida pela emoção provocada pela morte de Roberto Bolaños, minha irmã lembrou das inúmeras vezes em que nos sentamos para assistir Chaves. 

Posso estar enganado, mas acho que me lembro da estreia, ou pelo menos das primeiras vezes em que a TVS começou a exibir o seriado por volta de 1984. Entre um período e outro de aulas, quando passava em casa para almoçar, meu pai me chamou para ver o programa novo. Como quase todo mundo que já viu, vejo até hoje.

É mágico, é irresistível. É simples e universal. Aquela vila com seus tipos simplórios, emotivos no nível da caricatura, reflete qualquer bairro pobre de qualquer lugar, principalmente para nós, latino-americanos.

A identificação com os personagens e suas emoções tão humanas, quase rasteiras porque de primeira necessidade, é imediata. Quem não era pobre como o Chaves, conhecia alguém que era. E esse alguém sempre morava em algum lugar ali por perto, não sabíamos onde. E agora descubro que Chavo, o nome do personagem original mexicano, significa "moleque", como tantos meninos anônimos que não têm onde morar. 

Tudo isso bastaria para estabelecer a identificação instantânea com o Brasil, mas isso não é tudo. O que provocava tamanha magia era a qualidade do texto e da interpretação de Bolaños. Mais tarde, descobri que ele era conhecido como Chespirito, "pequeno Shakespeare", justamente pelo seu talento, um talento comum a muitos redatores, alguns também anônimos, de rádio e televisão, numa tradição herdada do circo que começou no mundo moderno com o inigualável Charlie Chaplin (a insistência no "Ch" inicial de seus personagens pode não ser à toa).

Em Chesperito, porém, esse talento extrapolou. O mais legal é que ele começou a fazer o Chapolin aos 41 anos (o Chaves é um ano mais novo). E fazia questão de lembrar disso às pessoas que diziam não ter oportunidades. "Oportunidades sempre existem". 

E agora percebo que o Chaves ia muito além do que parecia. Essa capacidade de nos encantar, de nos fazer rir mostrando como tudo pode ser mais simples, mesmo em meio às privações, é um dos principais legados desse outro Shakespeare, menor, é claro, mas tão ou mais importante para os meninos que ainda sonham dentro de nós.

14 agosto 2014

Familiar demais


Sabe aquela sensação de encontro? Quando parece que alguém ou alguma coisa foi feita para você? Pois foi isso o que senti ao ouvir Supersonic pela primeira vez, se não me engano em um programa do Fábio Massari na MTV.

Nessa mesma época comprei Definitely Maybe, o primeiro disco do Oasis, e descobri coisas inesquecíveis como Live Forever e Slide Away... Alguém já disse que é o melhor disco de estreia de todos os tempos. Aos poucos entendi quem estava por trás daquilo tudo: Noel Gallagher, o compositor (então era o único) e guitarrista da banda que, ao lado do irmão vocalista Liam, deu uma sacudida naquele cenário desolado desde a morte de Kurt Cobain. 

Sem ter a flama de Cobain, Noel tinha uma vantagem: era melhor compositor. Quando eu ouvi os lados B dos singles da banda lançados no Reino Unido eu só confirmei: Sad Song, Take me Away, (It's Good) To Be Free, Listen Up, Whatever... Eu podia imaginar como era para um garoto dos anos 60 ouvir Lennon & McCartney.

Os Beatles, aliás, eram a principal referência de Noel. Havia outras como David Bowie e Burt Bacharach. Mas havia sobretudo seu talento. Há algumas lendas em torno da relação de Noel com a banda. Consta que o Oasis foi formado por Liam e seus amigos e que o irmão mais velho só concordou em entrar para a banda se pudesse ser o único responsável pelas composições. 

Na autobiografia do primeiro baterista do Oasis, Tony McCarroll revela que a ideia de trazer Noel foi de Liam. Segundo o baterista, havia desconfiança em relação ao outro irmão Gallagher, tido como arrogante e presunçoso pelos demais. E quando, um dia, ele surgiu com Live Forever, Liam lançou para colegas um olhar orgulhoso que significava: "eu não disse?". 

A começar pela banda, estávamos todos diante de um autor de canções incrivelmente bem escritas e pegajosas. E eu, diante do cara que me salvou da adolescência.

*Definitely Maybe foi lançado há exatos vinte anos no Reino Unido.

21 abril 2014

Os nazarenos de Sevilha



Na Semana Santa Sevilha cheira a incenso. Estamos na terra dos nazarenos, penitentes encapuzados que há séculos, nessa época, realizam procissões até a imensa catedral da cidade andaluza.

Domingo de Ramos, caminhando ao acaso pela tradicional região de Macarena, encontrei pessoas com hábitos azuis e brancos, os rostos encobertos por máscaras cônicas. Não fosse o sol do meio-dia e eu diria que inspiravam medo. Decidi segui-las. Logo dobramos uma esquina e nos vimos diante da modesta Igreja de Nossa Senhora de Hiniesta, padroeira do ajuntamento.

Àquela hora havia uma pequena aglomeração esperando pela procissão na praça ao lado. Também havia um sem-número de nazarenos. Eram homens, mulheres e crianças da ordem de Hiniesta. Representavam o Cristo da Boa Morte.

Juntei-me a eles e a outros turistas. Aos poucos foram chegando mais e mais nazarenos, muitos com sandálias e alguns descalços, em penitência. Também o uso do capuz é um sacrifício. Sentado ao pé da cruz conversei com o senhor Francisco, el viejo. Hoje com setenta e quatro anos, ele contou que dos quatro aos vinte e cinco foi penitente. Desde então assiste aos cortejos. “É uma coisa muito antiga, que nos toca o coração quando somos jovens”, disse, batendo no peito. O pai dele também foi nazareno. E provavelmente o avô e o bisavô e outros ancestrais.

De fato, no Alcázar de Sevilha, o palácio que foi dos mouros e que ainda é a casa da família real espanhola na cidade, há uma tela sem data que retrata a chegada dos nazarenos à catedral em algum momento do século XVIII.

Um dos assistentes que trazia um broche da ordem na lapela disse que os nazarenos do Cristo da Boa Morte surgiram em 1560. Ele não soube explicar por que em algum momento as marchas foram interrompidas, mas disse que a partir de 1829 foram retomadas ininterruptamente.

Então surgiu uma banda militar anunciando a procissão. A bateria ditava o ritmo com um toque regular e fúnebre. Quando da porta da igreja despontaram os primeiros nazarenos com estandartes e velas, um naipe de metais começou a entoar uma música triunfal, quase gloriosa.


As crianças pediam caramelos aos romeiros e o público aplaudia a passagem dos estandartes. Acompanhei os penitentes por um trecho. Depois tentei cortar caminho até a região da catedral, onde o transito estava interditado parcialmente para a passagem dos cortejos e para a assistência ilustre da cidade. Foi impossível. O centro de Sevilha estava tomado por nazarenos brancos, negros e púrpura. Alguns com cruzes, outros com andores, todos com estandartes.

Os andores representando Cristo, Nossa Senhora e outros personagens dos evangelhos inspiravam devoção e respeito. Nas passagens mais delicadas pelas ruas estreitas, as complicadas manobras evolutivas eram embaladas pela melodia dos metais e, uma vez concluídas, aplaudidas pelo público emocionado, quase transido.

Quando finalmente consegui chegar ao albergue meus pés, pouco acostumados às ruas de pedra, estavam em frangalhos. Coloquei-os para cima e dormi. Depois saí. Por volta de meia-noite as ruas continuavam tomadas por nazarenos e turistas entusiasmados.


24 janeiro 2014

Violão

Há alguns dias fui acordado pelo meu violão. Naquele estado recém-saído do sono pensei por uns instantes que algum animal havia entrado em casa e derrubado o instrumento, um rato talvez. Ou o que seria pior: alguém entrara para um roubo e esbarrara no violão. Meio ressabiado me levantei e não vi nada nem ninguém. Fui até o canto e constatei que o cavalete, que sustenta as cordas no tampo, tinha se soltado libertando as cordas da afinação que, bem ou mal, eu tentava lhes impor.

O modelo "Clássico n° 28" da marca Di Giorgio foi comprado quando eu tinha nove ou dez anos. Eu não sei se a ideia de estudar foi minha ou de minha mãe, mas meu vizinho e amigo de infância, alguns anos mais velho, tinha aulas de violão e isso provavelmente me influenciou. Meus pais compraram o instrumento numa loja de departamentos que não existe mais em Sorocaba. Depois fui matriculado na Academia de Violão Rafael, a mesma do meu vizinho, uma escola de música que resiste no centro da cidade. O instrumento ficou na escola alguns dias para afinação e minha mãe se encarregou de escrever meu nome no selo da fábrica ao fundo da caixa para que não fosse confundido e trocado por outro. A caligrafia sofrida, resultado da penetração da caneta sem firmeza entre as cordas, está lá até hoje. 

Sentado no sofá da sala, eu analisei o instrumento. Sim, era possível consertá-lo, apesar do estrago que o cavalete fez no tampo, arrancando uma lasca de madeira. E me lembrei que algumas semanas antes, quando meu pai estava em casa, ele foi pegar alguma coisa e esbarrou no violão, quase o derrubando. E eu vi o cuidado e o carinho com que ele recostou o violão na parede. Tudo me emociona. 

Na academia, eu constatei que além do vizinho havia alguns colegas da escola para a qual eu fora transferido naquele mesmo ano. O Rafael não era professor para iniciantes e nós tínhamos aulas com o seu irmão, Domingos. Sentávamos em posição clássica, com o pé no apoio e o violão repousado na perna esquerda elevada. Aprendíamos a dedilhar temas como o "de Lara" ou o "de Vilma" e "Parabéns pra você". Os maiores desafios eram coisas como "La Bamba" e "Olhar 43".

Minha mãe me incentivou a escrever para minha avó em Itu contando a novidade. Nunca recuperei essa carta, mas dona Benedita, que em tempos antigos escrevia cartas para os empregados analfabetos das fazendas em que trabalhara, respondeu prontamente, me felicitando. Dirigia-se a mim e a minha irmã. "Querido e neta", era como começava... 

Tentávamos nos aplicar. Mas a verdade é que nossa concentração era mérito do rigor do professor Domingos. Bastava que ele saísse para que tirássemos os pés do apoio e repousássemos o violão na perna direita, na posição mais vulgar e, inocentes, tentássemos, com acordes ao invés do dedilhado, tocar coisas como Legião Urbana ou Ultraje a Rigor.

Um dia, eu estava na sala com o meu vizinho quando entraram duas meninas do bairro onde ficava a escola. Não eram alunas, eram meninas e estavam lá eu não sabia dizer por quê. Meu vizinho, mais malicioso e esperto do que eu, me mandou olhar as pernas de uma delas, a mais atraente. Eram pernas bonitas, mas estavam marcadas e manchadas como as nossas próprias pernas. Então entendi o que se passava. 

Saí da academia em poucos meses e fiquei alguns anos sem estudar violão. Sempre pensei em voltar. Um amigo de escola disse que me ensinaria, desde que eu me dedicasse a tocar contrabaixo elétrico na banda que estávamos pensando em montar. A essa altura, tinha ficado evidente para mim que, fosse como fosse, eu tocaria o violão apoiado na perna direita. Fiz aulas de violão "popular" com meu amigo, dominei quase todo o repertório da Legião Urbana e me dediquei também ao contrabaixo. Um dia, fui com meu pai à rua Santa Ifigênia, em São Paulo, onde compramos um baixo e um amplificador. 

A banda rendeu ótimas tardes de ensaios e alguma diversão, mas não passou de "fogo de palha", como diz minha mãe. Meus estudos, nunca sérios ou dedicados, me permitiram tirar algumas canções de ouvido e eu nunca me esquecerei do dia em que fiz isso com "Supersonic", do Oasis, até hoje uma das minhas preferidas.

O contrabaixo passou, mas o violão Di Giorgio me acompanhou quando entrei na faculdade. O repertório continuava popular, mas a prioridade agora eram canções de Caetano e Djavan. Quase todos os meninos da república em que eu morava tocavam violão e dois deles também tinham um instrumento. Eles queriam dar nomes aos violões, mas o meu permaneceu anônimo. Permaneceu sendo o "meu" violão, apesar de ter sofrido alguns maus-tratos e outros melhores que os meus no ambiente quase comunitário em que vivíamos.

Quando me formei, constatei que eu estava tocando as mesmas canções havia muito tempo e decidi não mais tocar violão. O instrumento, no entanto, permaneceu ao meu lado e, mais tarde, quando me mudei para uma rua de São Paulo famosa pelas lojas de instrumentos musicais, pensei que o violão teria uma boa vizinhança, ainda que repousasse, em silêncio. 

Nos meses em que vivi fora o violão retornou para o interior. Me lembro de pensar em comprar um violão na Inglaterra e tocar aquelas velhas canções no metrô a fim de ganhar algum dinheiro para poder viajar ou permanecer mais tempo por lá. Ideia passageira, fogo de palha. 

De volta ao Brasil, aquelas canções voltaram a fazer sentido nos momentos de angústia ou de relaxamento. E outras, novas, tiradas com a ajuda da internet. O encordoamento era sempre velho e durava bem mais do que um músico poderia admitir. O que eu tentava fazer era manter o violão asseado e isso incluía a afinação. Foi assim até que o cavalete rebelde, talvez em protesto contra o mutismo, se soltou e, projetado pela rigidez das cordas, produziu um acorde dissonante que me despertou para me transportar para um outro sonho, mais antigo.

'Pilatos', de Carlos Heitor Cony, simboliza o Brasil de Delfim Netto

Pilatos , romance de Carlos Heitor Cony publicado em 1974, pode ser lido como um retrato do Brasil de Delfim Netto, um dos artífices da dita...