24 janeiro 2014

Violão

Há alguns dias fui acordado pelo meu violão. Naquele estado recém-saído do sono pensei por uns instantes que algum animal havia entrado em casa e derrubado o instrumento, um rato talvez. Ou o que seria pior: alguém entrara para um roubo e esbarrara no violão. Meio ressabiado me levantei e não vi nada nem ninguém. Fui até o canto e constatei que o cavalete, que sustenta as cordas no tampo, tinha se soltado libertando as cordas da afinação que, bem ou mal, eu tentava lhes impor.

O modelo "Clássico n° 28" da marca Di Giorgio foi comprado quando eu tinha nove ou dez anos. Eu não sei se a ideia de estudar foi minha ou de minha mãe, mas meu vizinho e amigo de infância, alguns anos mais velho, tinha aulas de violão e isso provavelmente me influenciou. Meus pais compraram o instrumento numa loja de departamentos que não existe mais em Sorocaba. Depois fui matriculado na Academia de Violão Rafael, a mesma do meu vizinho, uma escola de música que resiste no centro da cidade. O instrumento ficou na escola alguns dias para afinação e minha mãe se encarregou de escrever meu nome no selo da fábrica ao fundo da caixa para que não fosse confundido e trocado por outro. A caligrafia sofrida, resultado da penetração da caneta sem firmeza entre as cordas, está lá até hoje. 

Sentado no sofá da sala, eu analisei o instrumento. Sim, era possível consertá-lo, apesar do estrago que o cavalete fez no tampo, arrancando uma lasca de madeira. E me lembrei que algumas semanas antes, quando meu pai estava em casa, ele foi pegar alguma coisa e esbarrou no violão, quase o derrubando. E eu vi o cuidado e o carinho com que ele recostou o violão na parede. Tudo me emociona. 

Na academia, eu constatei que além do vizinho havia alguns colegas da escola para a qual eu fora transferido naquele mesmo ano. O Rafael não era professor para iniciantes e nós tínhamos aulas com o seu irmão, Domingos. Sentávamos em posição clássica, com o pé no apoio e o violão repousado na perna esquerda elevada. Aprendíamos a dedilhar temas como o "de Lara" ou o "de Vilma" e "Parabéns pra você". Os maiores desafios eram coisas como "La Bamba" e "Olhar 43".

Minha mãe me incentivou a escrever para minha avó em Itu contando a novidade. Nunca recuperei essa carta, mas dona Benedita, que em tempos antigos escrevia cartas para os empregados analfabetos das fazendas em que trabalhara, respondeu prontamente, me felicitando. Dirigia-se a mim e a minha irmã. "Querido e neta", era como começava... 

Tentávamos nos aplicar. Mas a verdade é que nossa concentração era mérito do rigor do professor Domingos. Bastava que ele saísse para que tirássemos os pés do apoio e repousássemos o violão na perna direita, na posição mais vulgar e, inocentes, tentássemos, com acordes ao invés do dedilhado, tocar coisas como Legião Urbana ou Ultraje a Rigor.

Um dia, eu estava na sala com o meu vizinho quando entraram duas meninas do bairro onde ficava a escola. Não eram alunas, eram meninas e estavam lá eu não sabia dizer por quê. Meu vizinho, mais malicioso e esperto do que eu, me mandou olhar as pernas de uma delas, a mais atraente. Eram pernas bonitas, mas estavam marcadas e manchadas como as nossas próprias pernas. Então entendi o que se passava. 

Saí da academia em poucos meses e fiquei alguns anos sem estudar violão. Sempre pensei em voltar. Um amigo de escola disse que me ensinaria, desde que eu me dedicasse a tocar contrabaixo elétrico na banda que estávamos pensando em montar. A essa altura, tinha ficado evidente para mim que, fosse como fosse, eu tocaria o violão apoiado na perna direita. Fiz aulas de violão "popular" com meu amigo, dominei quase todo o repertório da Legião Urbana e me dediquei também ao contrabaixo. Um dia, fui com meu pai à rua Santa Ifigênia, em São Paulo, onde compramos um baixo e um amplificador. 

A banda rendeu ótimas tardes de ensaios e alguma diversão, mas não passou de "fogo de palha", como diz minha mãe. Meus estudos, nunca sérios ou dedicados, me permitiram tirar algumas canções de ouvido e eu nunca me esquecerei do dia em que fiz isso com "Supersonic", do Oasis, até hoje uma das minhas preferidas.

O contrabaixo passou, mas o violão Di Giorgio me acompanhou quando entrei na faculdade. O repertório continuava popular, mas a prioridade agora eram canções de Caetano e Djavan. Quase todos os meninos da república em que eu morava tocavam violão e dois deles também tinham um instrumento. Eles queriam dar nomes aos violões, mas o meu permaneceu anônimo. Permaneceu sendo o "meu" violão, apesar de ter sofrido alguns maus-tratos e outros melhores que os meus no ambiente quase comunitário em que vivíamos.

Quando me formei, constatei que eu estava tocando as mesmas canções havia muito tempo e decidi não mais tocar violão. O instrumento, no entanto, permaneceu ao meu lado e, mais tarde, quando me mudei para uma rua de São Paulo famosa pelas lojas de instrumentos musicais, pensei que o violão teria uma boa vizinhança, ainda que repousasse, em silêncio. 

Nos meses em que vivi fora o violão retornou para o interior. Me lembro de pensar em comprar um violão na Inglaterra e tocar aquelas velhas canções no metrô a fim de ganhar algum dinheiro para poder viajar ou permanecer mais tempo por lá. Ideia passageira, fogo de palha. 

De volta ao Brasil, aquelas canções voltaram a fazer sentido nos momentos de angústia ou de relaxamento. E outras, novas, tiradas com a ajuda da internet. O encordoamento era sempre velho e durava bem mais do que um músico poderia admitir. O que eu tentava fazer era manter o violão asseado e isso incluía a afinação. Foi assim até que o cavalete rebelde, talvez em protesto contra o mutismo, se soltou e, projetado pela rigidez das cordas, produziu um acorde dissonante que me despertou para me transportar para um outro sonho, mais antigo.

Um comentário:

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