Hoje pela manhã, logo que foi anunciado o Prêmio Nobel de Literatura ao húngaro László Krasznajorkai, comprei aquele que é considerado seu trabalho mais conhecido e talvez o mais importante, o romance Sátántangó. Na última semana, desde que o nome do brasileiro Milton Hatoum passou a ser cotado em casas de apostas, procurei me informar sobre as reais possibilidades de diversos candidatos. Krasznajorkai aparecia na ponta de uma lista extensa ao lado de nomes como o da chinesa Can Xue, do romeno Mircea Cartarescu e do australiano Gerald Murnane, que figuravam um pouco acima de escritores bastante cotados nos últimos anos como o japonês Haruki Murakami e o estadunidense Thomas Pynchon.
Diversos artigos de gente especializada no Nobel de Literatura diziam que era chegada a hora de um homem branco do leste europeu, um ano depois que o prêmio deu um pulo na Ásia para encontrar uma mulher, Han Kang, no ano passado (leiam, é aterrador). Então era a vez de Krasznajorkai ou de Cartarescu. Deu o primeiro.
Desde que li a apresentação de Sátántangó me entusiasmei com Krasznajorkai. "A ação se concentra na chegada de um homem misterioso, que pode ser um profeta, um vigarista, ou o próprio demônio, a uma aldeia húngara onde a chuva não para de cair", diz um trecho. Sabe-se que não se deve comprar um livro pela capa, mas acredito firmemente que se pode e até se deve comprar um livro pela apresentação, ainda que, como a cobertura, nem sempre ela corresponda ao conteúdo.
A chamada, no entanto, veio ao encontro de minha concepção sobre literatura. É claro que a literatura é um mundo que tudo comporta (está aí a história literária, que não me deixa mentir), mas, talvez pelo colonialismo, pelo distanciamento geográfico e linguístico de um brasileiro em relação a um húngaro, o que torna Krasznajorkai e qualquer outro escritor do Leste Europeu bastante exótico aos meus olhos, e talvez ainda devido a Gogol, Tolstói e Kafka, penso que a chegada de um homem misterioso que pode ser o próprio demônio a uma aldeia húngara onde a chuva não para de cair exemplifique perfeitamente o que faz a arte literária: ela te desloca de seu mundo habitual e conhecido (e, divagação dentro da divagação, penso em Se um viajante numa noite de inverno, de Italo Calvino. A literatura é uma eterna possibilidade, um "se", um "pode ser"...).
Por outro lado (ou do outro lado), o exotismo do escritor húngaro para um possível leitor brasileiro pode não ser assim tão diferente do exotismo de um escritor brasileiro para um leitor húngaro. Muito já se falou e se escreveu, inclusive com bastante rancor, sobre como os europeus esperavam de nós, brasileiros, a confirmação do exotismo, deixando de lado trabalhos em que não houvesse a correspondência entre o que se narra e de onde se narra, sobre "o quê" se narra. Nessa linha crítica e de leitura, muitos justificam até hoje o enorme sucesso de Jorge Amado no exterior.
Mas, aqui entre nós, como se imagina que um húngaro veja o Brasil? Como eles veem o "país do carnaval" ou querem ver a Amazônia? Nesse sentido, teria sido um acontecimento se o prêmio fosse para Milton Hatoum (meu palpite é que sua vez chegará), pois eles teriam gratas surpresas, do mesmo modo que espero ter surpresas com a leitura de Sátántangó. Pois não é com esse olhar sobre o exótico, sobre o diferente, sobre o inabitual e o extraordinário que o leitor se volta para a literatura? Não é exatamente isso que o leitor espera, assim como eu espero que minha imaginação se enriqueça com a possibilidade de o demônio surgir num vilarejo da Europa central onde a chuva não para de cair?
E o mais curioso e desconcertante é perceber que, mesmo diante disso tudo, uma obra literária não tem correspondências (e aqui eu me refiro a uma obra de arte literária). O que ela diz, da maneira como ela diz, só ela pode dizer. Por mais que um escritor se filie a outro, que uma obra seja tributária de outra ou mesmo de uma tradição em que se inscreve, o que deve sobressair nela é precisamente seu refinamento e sua originalidade. E o comitê do Prêmio Nobel, como costuma fazer, soube apontar isso muito bem em seu habitualmente lacônico e preciso comunicado de imprensa sobre o vencedor. László Krasznajorkai ganhou o prêmio "por sua obra convincente e visionária que, em meio ao terror apocalíptico, reafirma o poder da arte". Em outras palavras, por sua singularidade. Não vejo a hora do meu livro chegar.
Ilustração: Divulgação/Prêmio Nobel
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