Chico
Buarque, de quem talvez menos se esperava a defesa da “autorização” para a
publicação de biografias, foi também quem mais se enrolou nas justificativas
para sua posição. Primeiro publicou em O Globo um artigo curto e superficial defendendo
o veto de Roberto Carlos à biografia de Paulo César Araújo, não sem acusar o
autor de “Roberto Carlos em detalhes” de ter mentido sobre uma entrevista dada
por ele, Chico, para a obra expurgada. Assim que foto, vídeo, áudio e outros
recursos sinceros deixaram claro o equívoco do compositor, ele se desculpou, mas
com ressalvas.
Depois
admitiu que poderia estar mal informado e saiu-se com a seguinte declaração, de
onde foi tirada a manchete de sua entrevista para a Folha de S. Paulo nesta sexta-feira: “Continuo achando que o cidadão tem o direito de não querer ser
biografado, como tem o direito de não querer ser fotografado ou filmado. Me
pareceu natural isso. Parece que não”.
Diante disso, fica
claro que Chico Buarque está confuso. O músico não tem obrigação de ser um
especialista para formar a sua opinião, mas quando se propõe a adotar e
defender uma posição no debate público deveria, sim, estar melhor informado.
Ainda mais diante de sua própria história de vida.
O que está em
discussão não é o direito de querer ser biografado. Isso ele pode querer ou
não. Acontece que, como a pessoa pública que é, Chico não pode ter esse
controle. Defender a recusa à biografia é bem diferente de defender a censura
prévia - como hoje a lei brasileira permite. Os membros do Procure Saber
arrepiam-se ao verem-se taxados de censores, mas neste caso não há espaço para
meias palavras. Autorização prévia é, sim, condição de censura.
Toda e
qualquer pessoa pública – artistas, políticos, esportistas etc. – tem o direito
de querer colaborar com possíveis biógrafos. É um direito moral, pode-se
admiti-lo ou não. Na sua biografia de David Bowie, o americano Marc Spitz diz logo
de cara que adoraria falar com o músico inglês para logo se lamentar: Bowie, infelizmente, não fala com biógrafos.
Qualquer
pesquisa rápida na Amazon nos mostra dezenas de biografias e perfis do
camaleão. Todas foram feitas sem o depoimento do próprio Bowie? Sim! E Bowie
tentou censurá-las? Não! Simplesmente se resguardou e tomou a decisão de não
falar com biógrafos, talvez por não querer ver sua vida pessoal exposta. E não
é isso que vai fazer dele um censor, muito pelo contrário.
Estudantes
de jornalismo conhecem a célebre reportagem de Gay Talese, “Frank Sinatra está
resfriado”. O perfil ficou famoso porque o repórter o fez sem ouvir o próprio Sinatra.
Ora, há pelo menos dois mil anos estudos históricos e biografias vêm sendo
feitos dessa maneira. As fontes para historiadores, jornalistas e biógrafos são
inúmeras e pode-se, ainda que não seja o ideal, dispensar o depoimento direto em
muitos casos. Se houver injustiças ou inverdades, aí está a justiça para garantir
reparações por possíveis danos. E por mais precária que seja a realidade
brasileira, é difícil imaginar editores apostando em obras levianas em busca de
“milhões”.
Coisa
que, aliás, acontece nos países anglófonos. Em lugares como os Estados Unidos
ou a Inglaterra são publicadas inúmeras biografias sensacionalistas e “não
autorizadas” (só esse termo renderia um longo estudo sobre as relações do
brasileiro com o poder oficial), sobretudo de celebridades. Pois eu ia dizer
que, diante dessas biografias “não autorizadas” há uma tendência bastante comum
entre as pessoas públicas: elas contratam um ghost writer ou um parceiro ou
então elas mesmas se propõem a escrever, de próprio punho, suas histórias de
vida. E estas passam a ser – vejam que interessante – apenas mais uma versão dos
fatos. Não é porque foi publicada pelo próprio autor que é a verdadeira. O que
estou dizendo é que não há uma versão verdadeira. Pode, sim, haver uma oficial,
mas ela não é a única. E isso é perfeitamente entendido nesses mercados.
O
que é melhor: dezenas de biografias de David Bowie ou nenhuma, nem mesmo a “oficial”,
de Chico ou Caetano?
Recentemente,
o escritor Philip Roth, que vive cotado para ganhar o prêmio Nobel de
literatura, anunciou que deixaria de escrever ficção e que passaria a
dedicar-se à sua biografia. Percebem? Figura notória e admirada no mundo
inteiro, Roth sabe que não tem como evitar o interesse de seus leitores por sua
vida.
Cioso de sua
carreira literária, vai oferecer ao público a sua própria história, na qual
jamais vai constar que engrossou um movimento para proibir a liberdade de
expressão e controlar o interesse público, como já consta da biografia de seu
colega Chico Buarque de Holanda, com desculpas e tudo.