19 outubro 2013

Pau que bate em Chico...

Chico Buarque, de quem talvez menos se esperava a defesa da “autorização” para a publicação de biografias, foi também quem mais se enrolou nas justificativas para sua posição. Primeiro publicou em O Globo um artigo curto e superficial defendendo o veto de Roberto Carlos à biografia de Paulo César Araújo, não sem acusar o autor de “Roberto Carlos em detalhes” de ter mentido sobre uma entrevista dada por ele, Chico, para a obra expurgada. Assim que foto, vídeo, áudio e outros recursos sinceros deixaram claro o equívoco do compositor, ele se desculpou, mas com ressalvas.

Depois admitiu que poderia estar mal informado e saiu-se com a seguinte declaração, de onde foi tirada a manchete de sua entrevista para a Folha de S. Paulo nesta sexta-feira: “Continuo achando que o cidadão tem o direito de não querer ser biografado, como tem o direito de não querer ser fotografado ou filmado. Me pareceu natural isso. Parece que não”.

Diante disso, fica claro que Chico Buarque está confuso. O músico não tem obrigação de ser um especialista para formar a sua opinião, mas quando se propõe a adotar e defender uma posição no debate público deveria, sim, estar melhor informado. Ainda mais diante de sua própria história de vida.

O que está em discussão não é o direito de querer ser biografado. Isso ele pode querer ou não. Acontece que, como a pessoa pública que é, Chico não pode ter esse controle. Defender a recusa à biografia é bem diferente de defender a censura prévia - como hoje a lei brasileira permite. Os membros do Procure Saber arrepiam-se ao verem-se taxados de censores, mas neste caso não há espaço para meias palavras. Autorização prévia é, sim, condição de censura.

Toda e qualquer pessoa pública – artistas, políticos, esportistas etc. – tem o direito de querer colaborar com possíveis biógrafos. É um direito moral, pode-se admiti-lo ou não. Na sua biografia de David Bowie, o americano Marc Spitz diz logo de cara que adoraria falar com o músico inglês para logo se lamentar: Bowie, infelizmente, não fala com biógrafos.

Qualquer pesquisa rápida na Amazon nos mostra dezenas de biografias e perfis do camaleão. Todas foram feitas sem o depoimento do próprio Bowie? Sim! E Bowie tentou censurá-las? Não! Simplesmente se resguardou e tomou a decisão de não falar com biógrafos, talvez por não querer ver sua vida pessoal exposta. E não é isso que vai fazer dele um censor, muito pelo contrário.

Estudantes de jornalismo conhecem a célebre reportagem de Gay Talese, “Frank Sinatra está resfriado”. O perfil ficou famoso porque o repórter o fez sem ouvir o próprio Sinatra. Ora, há pelo menos dois mil anos estudos históricos e biografias vêm sendo feitos dessa maneira. As fontes para historiadores, jornalistas e biógrafos são inúmeras e pode-se, ainda que não seja o ideal, dispensar o depoimento direto em muitos casos. Se houver injustiças ou inverdades, aí está a justiça para garantir reparações por possíveis danos. E por mais precária que seja a realidade brasileira, é difícil imaginar editores apostando em obras levianas em busca de “milhões”.

Coisa que, aliás, acontece nos países anglófonos. Em lugares como os Estados Unidos ou a Inglaterra são publicadas inúmeras biografias sensacionalistas e “não autorizadas” (só esse termo renderia um longo estudo sobre as relações do brasileiro com o poder oficial), sobretudo de celebridades. Pois eu ia dizer que, diante dessas biografias “não autorizadas” há uma tendência bastante comum entre as pessoas públicas: elas contratam um ghost writer ou um parceiro ou então elas mesmas se propõem a escrever, de próprio punho, suas histórias de vida. E estas passam a ser – vejam que interessante – apenas mais uma versão dos fatos. Não é porque foi publicada pelo próprio autor que é a verdadeira. O que estou dizendo é que não há uma versão verdadeira. Pode, sim, haver uma oficial, mas ela não é a única. E isso é perfeitamente entendido nesses mercados.

O que é melhor: dezenas de biografias de David Bowie ou nenhuma, nem mesmo a “oficial”, de Chico ou Caetano?

Recentemente, o escritor Philip Roth, que vive cotado para ganhar o prêmio Nobel de literatura, anunciou que deixaria de escrever ficção e que passaria a dedicar-se à sua biografia. Percebem? Figura notória e admirada no mundo inteiro, Roth sabe que não tem como evitar o interesse de seus leitores por sua vida.

Cioso de sua carreira literária, vai oferecer ao público a sua própria história, na qual jamais vai constar que engrossou um movimento para proibir a liberdade de expressão e controlar o interesse público, como já consta da biografia de seu colega Chico Buarque de Holanda, com desculpas e tudo.

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