09 outubro 2015

Saudade pra lá do Orestes

Hoje eu acordei com uma sensação estranha, uma espécie de nostalgia que eu não me preocupei em entender de onde vinha. Então me pus a ouvir uma das minhas canções preferidas. Não costumo ouvi-la, já ouvi muito e prefiro me lembrar dela. Mas hoje eu ouvi.

Aí, eu me lembrei porque a evito. Tem uns versos lá que me fazem chorar. Sou meio emotivo e quase não aguentei. Estava lavando louça, um dos poucos afazeres domésticos que não me desagradam, e me segurei. Que besta, pensei, enquanto enxaguava os copos. Lavava os pratos e pensava não na música e sim no que ela significa para mim. 

Porque aquela sonoridade antiga, aquelas vozes e sotaques caipiras me lançam instantaneamente para uma casinha simples da Vila Santa Terezinha, em Itu. Para uma época que parecia que não ia acabar nunca e que, talvez justamente por isso, se tornou mágica. Como tudo, porém, ela passou e então um dia nos pegamos lavando louças e chorando diante da melodia que gostamos.

Uma música levou a outra e eu fui me lembrando especialmente da minha avó, que sorria docemente ao ouvir os falsetes do Milton Nascimento na gravação do Pena Branca e Xavantinho para o Cio da Terra. Então veio o inevitável, o dia com sua carga de exigências. Segui para o trabalho carregando aquela sensação de nostalgia.

Comi com os colegas num restaurante que tinha um tempero familiar, mas não estabeleci relação em momento algum. Eu já nem me lembrava que ficara nostálgico pela manhã quando agora à noite vi que minha mãe fez uma postagem que me revelou tudo. Ela já tinha dito ontem, mas eu me esqueci. Por mais que eu me esforce, sempre me esqueço de quase tudo. E minha mãe postou a foto do pai dela, meu Vô Dito ou Seu Galera, como também o chamavam. 

Hoje ele faria 95 anos. Se foi há muito tempo, eu era pouco mais que um menino, mas como me esquecer? Vô Dito é o homem mais incrível e o personagem mais rico que eu conheci. Não importa quantos livros eu leia ou quantas pessoas eu conheça, meu avô é a minha fonte inesgotável de mitos. 

Ele contava histórias de assombração, inventava causos sobre as vizinhas fofoqueiras, implicava e brincava com a obesidade do padre Chico, se irritava com o vendedor de sorvete que o acordava com uma gaitinha de plástico nas tardes de sábado, mas era sempre bom, justo e correto. Quando ia dizer que algo era longe, dizia que era pra lá do Orestes, uma região da cidade que, por mais que localizem, me parece também ela inventada.

Já escrevi sobre o Vô Dito antes, mas sei que textos como este não dão conta dele. Seu Galera merece muito mais e espero um dia ser capaz de corresponder a tudo o que ele me deu. Penso nesse sobrenome que também carrego e que se tornou uma gíria que eu mesmo uso, inadvertidamente. A palavra generosa, agregadora, ajuda, mas também é insuficiente, é claro.

Quem tiver dúvida, basta ir lá na Vila Santa Terezinha, bem antes do Orestes, em Itu, e perguntar para os mais velhos ou para o pessoal da minha idade que conviveu com ele e que ele tinha como filhos e netos. Garanto que todos terão histórias incríveis sobre aquele homem imenso. Lá, assim como aqui e no coração de minha mãe, seu Benedito está vivo, não tenho a menor dúvida. Então, hoje, só me resta desejar: feliz aniversário, vô.


20 julho 2015

O último planeta


Desde que a União Astronômica Internacional rebaixara Plutão à condição de planeta anão ele andava preocupado. Agora, com a visita de uma sonda à órbita de Plutão ele ficou ainda mais aflito. Aparentemente, um planeta anão podia ser tão ou mais interessante do que um planeta.

“No que você está pensando?”, ela perguntou.
“Em Plutão.” 
“O planeta?”

Ele demorou um pouco a responder, mas achou melhor não entrar em detalhes.

“Sim”.
“Você é doido”.
“Tem muita gente pensando em Plutão, não sou só eu”.
“E pra quê?”

Ele achava que, se um planeta anão tinha colinas de gelo e provavelmente rios, um planeta de verdade, um corpo celeste que cumprisse todos os pressupostos da União Astronômica Internacional, poderia ter muito mais. Agora, muito mais do que antes, era só uma questão de tempo, ele pensava, mas também não deixava de pensar que isso podia não fazer diferença alguma. Talvez ela tivesse razão.

Admitir que ela tinha razão era uma de suas maiores dificuldades. Ele vivia inclinado sobre livros e filmes que ela nem ousava ler ou ver. Ela não lia nada, somente a seção de horóscopo de revistas femininas e da internet, mas, no fim, ao final de qualquer conversa ela parecia estar com a razão. Nem chegava a arrogar essa condição, eles nem falavam sobre isso, mas, terminada a conversa, ficava na atmosfera aquela sensação de que ela tinha vencido.

Muitos daqueles livros diziam que isso era sabedoria, mas ele não encontrava em nenhum deles um caminho para adquiri-la.

E se Plutão for novamente reclassificado? As descobertas eram tantas e tão extraordinárias que não seria impossível. Mas Plutão era o menor dos problemas dele. Havia questões muito maiores e insolúveis.

“A gente nunca sai, você reparou?”
“Para onde quer ir?”
“Sei lá, sair daqui. Você vive aí enfiado nesses livros e se esquece que tem uma mulher. Preciso sair, ver gente, ir a lugares diferentes.”
“Não vai começar, vai?”
"Já comecei, mas não adianta, você não está nem aí com o que eu digo.”

Ele apenas baixou os olhos.

“Vou passar um café para nós dois, tudo bem?”, ele perguntou.

Por um momento pensou em mandá-la para Plutão. Sem maldade. Se pudesse ele também iria. Iria na frente, aliás. Plutão. Usaria o planeta como o Doutor Manhattan usava a lua. Ficaria lá, siderado, pensando, lunático.

“Lunático! Você está se tornando um lunático, isso sim”, ele ouviu detrás do balcão da cozinha americana enquanto procurava alguma coisa no armário embutido.

“Acabou o açúcar”, ele disse.  
“Mais tarde eu compro. Coloque adoçante”.
“Você sabe que eu não gosto”.
“Então tome puro, eu não vou descer para comprar agora.”
“Você não queria sair?”

Ela parou, fuzilou-o com o olhar e disse:

“Olha, Carlos, eu estou cansada. Pegar jornal, comprar café, açúcar e tudo o mais nessa casa eu não ligo, você sabe, mas ter que ouvir esse tipo de ironia já é demais para mim. Eu vou sair, sim. Vou ficar na casa da Val por uns dias. Use-os para pensar em algo que vale a pena. Não está dando certo”. 

Ele ficou de pé, segurando o pires e a xícara.

Ela saiu naquela noite. “Volte para casa, eu vou mudar”, ele disse em várias mensagens. “Carlos, eu preciso de tempo. Por favor tente respeitar meu pedido. Logo mais vamos conversar.” 

Ele detestava astrologia, mas agora pensava na influência que o astro tivera sobre sua vida. Júlia nunca mais voltou. Carlos permaneceu onde estava, pensando em planetas anões e cordilheiras geladas.

17 abril 2015

Doce de leite

Gosto de doce de leite. Em pasta, de preferência. Passei boa parte da infância chupando sachês de doce de leite. Eram doces de bar. Em barra, competiam com a paçoca, mas o pastoso estava em um patamar à altura do brigadeiro.

Minha primeira namorada era mineira. Na primeira vez que fui a sua casa em Poços de Caldas dei um pequeno vexame diante de uma mesa repleta de pães de queijo e, claro, de doce de leite.

Esta semana estive em uma fazenda em Patos de Minas. A pauta era sobre café, mas fomos recebidos com a mesa farta típica do estado: queijo (sempre!), bolo de milho, goiabada cascão, quibe, esfirra, sucos variados e por aí afora, mas o que eu vi primeiro foi uma tigela com doce de leite.

Comi um pouco de tudo e depois um pouco mais, mas não toquei no doce. Quando todos se levantavam, enfiei minha colher na tigela e peguei o meu bocado. Não tinha a ver com discrição. Era um arremate, eu não gosto de misturar doce de leite com nada. No pão, por exemplo, não gosto. Tampouco com queijo. E ainda acho estranhas essas “compotas” com coco ou ameixa. Doce de leite pra mim é algo puro, com um fim em si mesmo.

Expliquei isso à Sônia, a assessora de imprensa que nos recebeu. Então ela disse que eu devia ser um daqueles que colocam o leite condensado na panela de pressão. Realmente eu seria um desses não fosse um acidente que houve lá em casa uma vez.

Uma casquinha entupiu o pino e a panela explodiu. Eu estava brincando na rua e, como todo mundo do bairro, corri para casa para ver o que tinha acontecido. Quando entrei notei que havia feijão por tudo quanto era lado. O tampo do fogão estava afundado e, no teto, havia uma marca feita pela força do pino. Numa ponta minha mãe, vinda da sala, olhava atônita para o meu pai, que até o momento da explosão bebia cerveja à uma mesa do outro lado. Com feijão na cabeça, ele dizia:

- Você quer me matar, mulher? Quer me matar?!

Por sorte ninguém se feriu. Até hoje ele enfia latas de leite condensado na panela de pressão, mas eu nunca aprendi a usar uma. Admito o medo e acho que isso me salvou de alguma maneira. Pude fazer outras coisas na vida além desse doce de leite improvisado.

Sempre que menciono minha paixão pelos doces, alguém tem uma sugestão. Maísa, uma das fontes da pauta do café, também ouviu minha história e disse que eu preciso comer o doce da Universidade de Viçosa. Parece que eles têm uma produção por lá e já estou pensando em um jeito de prová-lo.

Uma vez o André Gaúcho me disse que o melhor doce de leite do mundo era um do Rio Grande do Sul. Gaúchos são orgulhosos de sua terra, achei que ele estivesse exagerando. Então um dia, há alguns anos, em viagem com a família para Florianópolis, descobri que lá eles também tinham esse doce. Compramos um pote e eu comi de um modo que eu julguei ser comedido. Meu pai também provou e deu seu veredito: o doce era bom. Até que outro dia a Flávia, nossa anfitriã daquela vez, escreveu para minha mãe perguntando: “E o Vinicius? Continua gostando de doce de leite?” Devo ter exagerado, admito.

Volta e meia alguém menciona os doces de leite do Uruguai e da Argentina como se fossem o suprassumo. Pode ser, ainda vou provar. Já tentei encontrar algo parecido no estrangeiro. Na França vi um produto semelhante, mas não era a mesma coisa. Parece que doce é típico da América Latina. 

De qualquer maneira gosto de imaginar os doces de leite que podem estar sendo produzidos por aí. Penso que em algum lugar da Suíça haverá um preparo sublime, à altura de suas montanhas. Ou que na Índia exista uma pasta preparada há milênios e que ajudou a humanidade a chegar até aqui.

Seja como for, nenhum jamais se igualará ao da minha prima Tere, lá de Capão Bonito. Menino, eu ia para o sítio e, enquanto brincava com meus primos, via alguém passar com uns baldes vindos diretamente do curral. O resultado era um doce peculiar até na cor, clara como o próprio leite.

Há mais de vinte anos não vou àquela fazenda. Mas um dia ainda volto só para retomar aquele sabor inesquecível. A prima Tere fez o doce de leite da minha vida.

26 janeiro 2015

Almas mofadas

Era inevitável: a metrópole ficaria sem água. Uso indiscriminado, mudanças climáticas, diminuição das chuvas, destruição de matas ciliares e de mananciais tinham criado um cenário desesperador. Ao invés dos investimentos em infraestrutura, o governo tinha aberto o capital da companhia de águas e distribuído o lucro aos acionistas. Fora a economia espontânea da população, algo que deveria ser recorrente, habitual, nada fora pensado para compensar os prejuízos da escassez que minguava o principal reservatório da cidade.

Depois da utilização de três reservas consideradas mortas, as previsões mais otimistas garantiam que a água duraria três ou quatro meses, no máximo. Então começaram a aparecer as explicações dos especialistas. A cidade viveria alguns anos de racionamento e escassez até que, enfim, chegasse o próximo ciclo das águas, até que a média histórica de chuvas fosse restabelecida. Durante esse tempo centros de compras, restaurantes e até indústrias teriam de ser fechados em determinados períodos. Haveria também um êxodo urbano. Como em um filme catástrofe, cidadãos partiriam em busca de solo mais fértil onde pudessem reencontrar a vida que, eles apenas suspeitavam, já tinham perdido.

Houve esperança de que um improvável estadista brotasse das entranhas do governador. Houve esperança de que a autoridade assumisse a crise e conversasse com segmentos diversos da sociedade buscando orientação, instruindo a população, sem rodeios, sem meias palavras, sem recorrer a um vocabulário empolado e pobre para dizer o que poderia e deveria ser feito. Tudo não passou de esperança. A cidade, passiva, esperava pelo pior.

Perto do prazo estipulado para o fim, perto da realização na vida prática da desertificação que há muito já dominava a alma daqueles cidadãos, começaram as torrentes. O céu vertia um volume de água inimaginável e insólito. Os efeitos imediatos eram velhos conhecidos: enchentes, quedas de árvores, pane em semáforos de importantes cruzamentos e falta de energia elétrica nos bairros periféricos.

As chuvas, porém, caíram ininterruptamente em todas as regiões, sem trégua ou misericórdia. A população, inundada, não sabia o que fazer. No começo todos pensaram que fosse uma dádiva e houve até quem tentasse glorificar o governador, mas logo a bênção foi atribuída a um santo. Isso durou pouco. Foi quando todos viram que a desgraça que se abatia sobre a cidade não tinha nada a ver com o divino.

Bairros baixos começaram a submergir. Os altos, nos topos de colinas que um dia pertenceram às árvores e aos bichos, ficaram ilhados. Em algum momento houve a tentativa de viver sobre os telhados, mas era impossível. Também os telhados desapareceram. Em meio a uma interminável tempestade de raios, não havia helicópteros para sobrevoar as regiões alagadas e abastecê-las. Barcos eram afundados em meio às vagas. Essa situação, drástica, implacável, durou três anos e meio. Nem a previsão do êxodo urbano foi confirmada. Os que conseguiram sair foram tão poucos que se tornaram sobreviventes improváveis. Saíam com o que tinham: corpos maculados e olhares inundados.

A metrópole não resistiu. Era como se as barragens de uma represa impossível tivessem repentinamente se rompido jorrando toda a água do mundo. Era como se Deus, cansado de ser desafiado, finalmente pusesse termo a um antigo plano de aniquilar tudo: bairros, prédios, ganância, indiferença, prepotência, sonhos e toda a sujeira que se formara naquelas almas antes secas e, no fim de tudo, mofadas.

'Pilatos', de Carlos Heitor Cony, simboliza o Brasil de Delfim Netto

Pilatos , romance de Carlos Heitor Cony publicado em 1974, pode ser lido como um retrato do Brasil de Delfim Netto, um dos artífices da dita...