Era inevitável: a metrópole ficaria sem água. Uso
indiscriminado, mudanças climáticas, diminuição das chuvas, destruição de matas
ciliares e de mananciais tinham criado um cenário desesperador. Ao invés dos
investimentos em infraestrutura, o governo tinha aberto o capital da companhia
de águas e distribuído o lucro aos acionistas. Fora a economia espontânea da
população, algo que deveria ser recorrente, habitual, nada fora pensado para
compensar os prejuízos da escassez que minguava o principal reservatório da cidade.
Depois da utilização de três reservas consideradas mortas, as
previsões mais otimistas garantiam que a água duraria três ou quatro meses, no máximo.
Então começaram a aparecer as explicações dos especialistas. A cidade
viveria alguns anos de racionamento e escassez até que, enfim, chegasse o
próximo ciclo das águas, até que a média histórica de chuvas fosse
restabelecida. Durante esse tempo centros de compras, restaurantes e até
indústrias teriam de ser fechados em determinados períodos. Haveria também um
êxodo urbano. Como em um filme catástrofe, cidadãos partiriam em busca de solo
mais fértil onde pudessem reencontrar a vida que, eles apenas suspeitavam, já tinham
perdido.
Houve esperança de que um improvável estadista brotasse das
entranhas do governador. Houve esperança de que a autoridade assumisse a crise
e conversasse com segmentos diversos da sociedade buscando orientação, instruindo
a população, sem rodeios, sem meias palavras, sem recorrer a um vocabulário
empolado e pobre para dizer o que poderia e deveria ser feito. Tudo não passou
de esperança. A cidade, passiva, esperava pelo pior.
Perto do prazo estipulado para o fim, perto da realização
na vida prática da desertificação que há muito já dominava a alma daqueles
cidadãos, começaram as torrentes. O céu vertia um volume de água
inimaginável e insólito. Os efeitos
imediatos eram velhos conhecidos: enchentes, quedas de árvores, pane em
semáforos de importantes cruzamentos e falta de energia elétrica nos bairros
periféricos.
As chuvas, porém, caíram ininterruptamente em todas as
regiões, sem trégua ou misericórdia. A população, inundada, não sabia o que
fazer. No começo todos pensaram que fosse uma dádiva e houve até quem tentasse
glorificar o governador, mas logo a bênção foi
atribuída a um santo. Isso durou pouco. Foi quando todos viram que a desgraça
que se abatia sobre a cidade não tinha nada a ver com o divino.
Bairros baixos começaram a submergir. Os altos, nos topos
de colinas que um dia pertenceram às árvores e aos bichos, ficaram ilhados. Em
algum momento houve a tentativa de viver sobre os telhados, mas era impossível. Também os telhados desapareceram. Em meio a uma interminável tempestade de raios, não havia helicópteros para
sobrevoar as regiões alagadas e abastecê-las. Barcos eram afundados em meio às
vagas. Essa situação, drástica, implacável, durou três anos e
meio. Nem a previsão do êxodo urbano foi confirmada. Os que conseguiram sair
foram tão poucos que se tornaram sobreviventes improváveis. Saíam com o que
tinham: corpos maculados e olhares inundados.
A metrópole não resistiu. Era como se as barragens de uma represa impossível tivessem repentinamente se rompido jorrando toda a água do mundo. Era como se Deus,
cansado de ser desafiado, finalmente pusesse termo a um antigo plano de
aniquilar tudo: bairros, prédios, ganância, indiferença, prepotência, sonhos e
toda a sujeira que se formara naquelas almas antes secas e, no fim de tudo, mofadas.
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