20 julho 2015

O último planeta


Desde que a União Astronômica Internacional rebaixara Plutão à condição de planeta anão ele andava preocupado. Agora, com a visita de uma sonda à órbita de Plutão ele ficou ainda mais aflito. Aparentemente, um planeta anão podia ser tão ou mais interessante do que um planeta.

“No que você está pensando?”, ela perguntou.
“Em Plutão.” 
“O planeta?”

Ele demorou um pouco a responder, mas achou melhor não entrar em detalhes.

“Sim”.
“Você é doido”.
“Tem muita gente pensando em Plutão, não sou só eu”.
“E pra quê?”

Ele achava que, se um planeta anão tinha colinas de gelo e provavelmente rios, um planeta de verdade, um corpo celeste que cumprisse todos os pressupostos da União Astronômica Internacional, poderia ter muito mais. Agora, muito mais do que antes, era só uma questão de tempo, ele pensava, mas também não deixava de pensar que isso podia não fazer diferença alguma. Talvez ela tivesse razão.

Admitir que ela tinha razão era uma de suas maiores dificuldades. Ele vivia inclinado sobre livros e filmes que ela nem ousava ler ou ver. Ela não lia nada, somente a seção de horóscopo de revistas femininas e da internet, mas, no fim, ao final de qualquer conversa ela parecia estar com a razão. Nem chegava a arrogar essa condição, eles nem falavam sobre isso, mas, terminada a conversa, ficava na atmosfera aquela sensação de que ela tinha vencido.

Muitos daqueles livros diziam que isso era sabedoria, mas ele não encontrava em nenhum deles um caminho para adquiri-la.

E se Plutão for novamente reclassificado? As descobertas eram tantas e tão extraordinárias que não seria impossível. Mas Plutão era o menor dos problemas dele. Havia questões muito maiores e insolúveis.

“A gente nunca sai, você reparou?”
“Para onde quer ir?”
“Sei lá, sair daqui. Você vive aí enfiado nesses livros e se esquece que tem uma mulher. Preciso sair, ver gente, ir a lugares diferentes.”
“Não vai começar, vai?”
"Já comecei, mas não adianta, você não está nem aí com o que eu digo.”

Ele apenas baixou os olhos.

“Vou passar um café para nós dois, tudo bem?”, ele perguntou.

Por um momento pensou em mandá-la para Plutão. Sem maldade. Se pudesse ele também iria. Iria na frente, aliás. Plutão. Usaria o planeta como o Doutor Manhattan usava a lua. Ficaria lá, siderado, pensando, lunático.

“Lunático! Você está se tornando um lunático, isso sim”, ele ouviu detrás do balcão da cozinha americana enquanto procurava alguma coisa no armário embutido.

“Acabou o açúcar”, ele disse.  
“Mais tarde eu compro. Coloque adoçante”.
“Você sabe que eu não gosto”.
“Então tome puro, eu não vou descer para comprar agora.”
“Você não queria sair?”

Ela parou, fuzilou-o com o olhar e disse:

“Olha, Carlos, eu estou cansada. Pegar jornal, comprar café, açúcar e tudo o mais nessa casa eu não ligo, você sabe, mas ter que ouvir esse tipo de ironia já é demais para mim. Eu vou sair, sim. Vou ficar na casa da Val por uns dias. Use-os para pensar em algo que vale a pena. Não está dando certo”. 

Ele ficou de pé, segurando o pires e a xícara.

Ela saiu naquela noite. “Volte para casa, eu vou mudar”, ele disse em várias mensagens. “Carlos, eu preciso de tempo. Por favor tente respeitar meu pedido. Logo mais vamos conversar.” 

Ele detestava astrologia, mas agora pensava na influência que o astro tivera sobre sua vida. Júlia nunca mais voltou. Carlos permaneceu onde estava, pensando em planetas anões e cordilheiras geladas.

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