12 novembro 2016

"Estou pronto"


Ao lado de Tom Waits, Leonard Cohen foi meu companheiro de viagem no período em que morei em Londres em 2011. Antes de sair do Brasil, meu amigo Alexandre Diniz me presenteou com a obra completa de Waits. Na Inglaterra, eu baixei boa parte da discografia de Leonard Cohen. Passava horas ouvindo a ambos, mais ainda quando a noite se aprofundava e nos envolvia.

Eu me lembro de ter ouvido seu nome pela primeira vez quando Kurt Cobain o cantou na letra de “Pennyroyal Tea”. Desde então, Leonard Cohen era um propósito, desses que fazemos e que vamos deixando a cargo do tempo. Um dia vou conhecer a obra de Leonard Cohen, eu me dizia, e esse dia veio naquele meu exílio voluntário. 

Num sábado, encontrei numa livraria de encalhados de Notting Hill uma edição popular de Beautiful Losers, de 1966, um intrincado romance escrito por Cohen antes de passar para o território da canção. Agora, pensando naquele livro, vejo como tem relações, de contexto, com PanAmérica, de José Agrippino de Paula, do mesmo modo que a guinada de Cohen para o território da canção pode ser associada à de outro maldito, nosso Jorge Mautner.

Mas em Londres, apesar de eu ter carregado uma edição de PanAmérica, apesar de eu ter lido muito superficial e precariamente Beautiful losers, eram as canções de Cohen – e as de Waits – que me acompanhavam.

Gosto muito de seus discos gravados ao vivo como “Live Songs”, de 1973, que traz uma belíssima e poderosa canção, “Nancy”, além de “Bird on the wire", "Please don't pass me by e "Tonight will be fine”. Gosto de suas performances no palco e de sua prosódia clara e delicada quando declama ou fala para introduzir as canções.

Há um mês, quando Bob Dylan ganhou o Prêmio Nobel de literatura, foi de Cohen a declaração mais precisa, como cabe, aliás, apenas aos grandes poetas: “Para mim, é como dar uma medalha ao Everest por ele ser o mais alto do mundo.”

Dylan também o admirava. Disse que as canções de Cohen eram como orações. Nos últimos tempos, o trovador que tão bem cantou o amor estava se preparando para a morte. Numa das faixas de seu último disco, o compositor de “Hallelujah” orou mais uma vez: “Estou pronto, meu senhor.”

(Foto: Takahiro Kyono)

13 outubro 2016

No direction home


Sempre me interessei pela trajetória pessoal singularíssima que transformou um obscuro garoto de Minnesota, nos Estados Unidos, em um dos grandes artistas contemporâneos.

Em um curtíssimo espaço de tempo, Bob Dylan despontou como a grande revelação da música tradicional americana (folk music), foi rotulado como cantor de protesto e aclamado o porta-voz de uma geração (justo a dos anos 1960). Entretanto, ele deu um pé em tudo isso para fazer simplesmente o que queria – e não o que esperavam dele.

No álbum Highway 61 Revisited, de 1965, o compositor utilizou uma banda pela primeira vez, acrescentando elementos da música pop a suas canções. A opção estética e o talento do artista apontariam caminhos insuspeitos para a própria música pop.

No Direction Home, documentário de Martin Scorsese, apanha Robert Allen Zimmerman desde o primeiro som ouvido na infância até o final da longa turnê que fez com a banda entre 1965 e 66, já com o nome que o tornou famoso. Foi durante essas apresentações que as vaias se tornaram constantes, pois os puristas do folk e os fãs radicais do primeiro momento não aceitavam os novos rumos tomados pelo compositor. Ao longo de seus mais de quarenta anos de carreira, Dylan ficaria conhecido por se reinventar e recusar qualquer rótulo.

Documentando apenas esses primeiros anos e trazendo muito material inédito do arquivo pessoal do compositor, dezenas de entrevistas com companheiros de música e com o próprio Dylan, No Direction Home mostra a essência de todo verdadeiro artista: estilo e independência.

Na entrevista realizada nos dias atuais, o compositor pontua os acontecimentos iniciais de sua carreira com a lucidez habitual e sem qualquer tipo de didatismo ou arrependimento com relação a suas posições e opções artísticas. Seus comentários servem menos para esclarecê-las do que para reafirmá-las.

Os primeiros minutos do filme mostram uma controversa apresentação de Dylan e banda (The Band, cujo show de despedida foi filmado pelo próprio Scorsese em 1976 e lançado com o título de The Last Waltz) na Inglaterra. Ele está cantando justamente o hino "Like a Rolling Stone" e a plateia permanece imóvel. Dylan não fica alheio à recepção fria, mas mantém uma postura cool. É com base nessa apresentação que se desenrola todo o filme.

No Minnesota onde nasceu, o menino aspirante a cantor ouvia rádios de outras cidades durante a noite, o único período do dia em que se podia sintonizar as estações distantes. Começou a tocar piano e violão aos dez anos. “Eu queria aprender a maior quantidade de canções possível”. Durante a adolescência, montou bandas e passou a se apresentar em sua região. Foi nessa época que começou a difundir pequenas mentiras sobre sim mesmo.

A leitura de On the Road foi, como para tantos outros, determinante em sua formação. O universo dos loucos, dos loucos pela vida, dos beatos alucinados de Jack Kerouac fascinou o jovem que queria sair de uma cidade em que o frio era tanto que impedia qualquer ato de rebeldia. Na Universidade de seu estado, Dylan chegou a roubar grande parte da coleção de discos de um colega. “Para um expedicionário musical como eu era, deparar-se com aquela quantidade de discos era uma oportunidade única”.

Mais importante do que a obra de Kerouac foi a leitura do livro de seu herói na época, o compositor de protesto Woody Guthrie. Dylan soube que Woody estava doente e, no melhor estilo on the road, pegou carona para visitá-lo no sanatório em que ele se encontrava em Nova York.

Morando na cidade, o já então Bob Dylan passou a cantar em bares de West Village, onde conheceu personalidades como o também cantor de folk e ídolo Dave Van Ronk e o poeta beat Allen Ginsberg. Foi ali que depurou ainda mais sua personalidade artística. A certa altura do filme, um amigo chega a dizer: “Ele era uma espécie de esponja. Em quem esbarrava, absorvia alguma coisa.” E essas coisas podiam ser até mesmo trejeitos e sotaques. Conseguiu gravar o seu primeiro disco, mas foi com o segundo, The Freewheelin’ Bob Dylan, que despontou como o jovem gênio.

Consolidado como um cantor de protesto, participou de eventos históricos, tendo, por exemplo, se apresentado em Washington no dia em que Martin Lutter King proferiu o famoso discurso "I Have a Dream." Mas, mesmo com toda a convulsão social e as ameaças apocalípticas do período, Dylan estava preocupado e comprometido apenas com o seu trabalho. E não faria concessões à realidade histórica.

Alguns discos depois, viria o clássico Highway 61 Revisited. A sonoridade agora estava profundamente afetada. Era o disco da banda. O disco de "Like a Rolling Stone". E o disco que gerou a revolta dos tradicionalistas e as vaias nas plateias a partir da polêmica apresentação em conjunto no tradicional Festival de Folk de Newport. “Eu não entendia o motivo das vaias."

O que para Bob Dylan era uma evolução artística consciente passou a ser encarado como uma simples concessão ao mercado musical, como queriam aqueles fãs mais ortodoxos. Mas não era o caso. E as provas são as cenas em que o artista recusa toda a celebrização e a mitificação da indústria da música pop. As coletivas parecem absurdas e despropositadas. Alguém pergunta: “Por que você deixou de ser um cantor de protesto?” A resposta é simples e direta: “Quem te disse isso? Eu nunca deixei de ser um cantor de protesto. Todas as minhas canções são de protesto.” Em outra ocasião, ele se recusa a posar com os óculos escuros colados aos lábios. E para um fã ávido por um autógrafo: “Você não precisa do meu autógrafo. Se precisasse, eu te daria”.

Aqui reside o maior mérito do documentário: o desenvolvimento pessoal do artista, a opção pelos caminhos estéticos que ele queria percorrer em contraposição às tentativas de enquadrar uma personalidade tão complexa em esquemas pré-determinados para fazer dele mais um ídolo pop como os Beatles, por exemplo, tinham se tornado. E, se mesmo assim, Dylan se tornou um mito, foi graças a um talento descomunal que nunca se dobrou diante de nenhum esquema.

O filme termina pouco antes de Dylan sofrer o acidente de moto que usaria como desculpa para deixar os palcos por cerca de oito anos. É um Dylan de olhar cansado que anuncia no backstage querer voltar para a casa.

Poucos diretores conseguiriam um resultado tão autêntico ao tentar captar a essência do compositor, como Martin Scorsese conseguiu. Poucos artistas possuem tanta consciência e lucidez sobre seu trabalho a ponto de defini-lo em sentenças tão simples e evidentes, como faz Bob Dylan no filme: “Eu nasci muito longe do lugar onde eu deveria estar. Então, de certo modo, estou sempre voltando para casa.” (22 de junho de 2006)

19 maio 2016

Boris Schnaiderman e José Agrippino de Paula


Na metade dos anos 1960, Boris Schnaiderman era professor da faculdade de letras da Universidade de São Paulo. Criador e titular do primeiro departamento de literatura russa do Brasil, esse ucraniano radicado no país colaborava com jornais paulistanos resenhando livros de autores novos e consagrados.

No apartamento da rua Dr. Veiga Filho, onde morava na capital paulista, do mesmo modo como já acontecera com Clarice Lispector no Rio, ele recebeu a visita de um jovem barbado e de figura impressionante chamado José Agrippino de Paula. A conversa foi rápida, mas Agrippino cumpriu o seu objetivo entregando ao professor os originais datilografados de um romance. Schnaiderman se comprometeu a ler o trabalho, o que fez em poucos dias.

A fórmula era original, mas o crítico não teve grande entusiasmo pela obra, que considerou mal realizada. Ciente de sua função, entretanto, percebeu que o livro era inovador e apontava caminhos. Enviou, então, o manuscrito para Ênio Silveira, responsável pela maior editora daquele tempo, a Civilização Brasileira, do Rio de Janeiro, que publicava os trabalhos de Shnaiderman como tradutor.

O editor encaminhou os originais para um dos principais escritores da casa, Carlos Heitor Cony. Cronista na imprensa carioca e autor filiado a um romance de temática burguesa, Cony deu o seu parecer ao editor: o livro merecia ser publicado. "Lugar público" saiu em 1965.

(Esse texto, ligeiramente alterado, faz parte do meu trabalho de conclusão do curso de jornalismo, "O Homem Hibernado, a vida de José Agrippino de Paula", de 2010. As informações me foram passadas pelo próprio professor em uma visita que lhe fiz naquele ano. Na ocasião, depois de falarmos sobre Agrippino, pedi que Schnaiderman me falasse de autores brasileiros contemporâneos. Ele recomendou a leitura de "Cine privê", de Antonio Carlos Viana. O professor Boris Schnaiderman morreu ontem, aos 99 anos, em São Paulo.)

11 março 2016

A peça

A solidão do gabinete e os três homens engomados trabalhando no pedido de prisão que deve entrar para a História. A cooperação amigável e a busca de referências precisas. A peça final tem que ser, antes de tudo, correta. De fato, a noção de correção deve perpassar todo o texto. Não pode haver margem para erros e contestações – quaisquer que sejam. Sobretudo as jurídicas. Então esse trio de homens sérios e honrados, esse trio que parece entalhado sente a necessidade de apontar referências morais e filosóficas, pois não basta que eles tenham, se é que têm, referências morais e filosóficas, de onde eles vêm, a matéria de que são feitos os obriga a tornar as referências, quer tenham ou não, evidentes. É preciso mostrar certa erudição, dar a ver, diriam alguns. Portanto essas referências precisam aparecer e todos eles logo concordam, todos são unânimes em um ponto: essas referências precisam ser marcantes, melhor se forem referências comuns também ao próprio executado que sirvam para lembrá-lo de sua origem ou pelo menos de coisas que no julgamento deles um dia ele, o executado, pareceu defender. O trabalho com a escrita é complexo, há um momento em que as palavras fluem e então é fácil nos empolgarmos com o desenvolvimento do texto, a coisa se erguendo de modo tão límpido, tão fácil e pensamos que bastarão alguns retoques, uma boa leitura mais tarde e estará pronto, é justamente a esses momentos que precisamos estar atentos. Os três homens, porém, se atropelam justamente naquilo que faz com que todos os homens se atropelem, a vaidade. Também têm pressa talvez, é preciso fazer isso logo não se sabe o motivo ou a motivação por trás de tudo ainda que se possa suspeitar, e também eles são três cabeças afinal seis mãos e seis olhos trabalhando, a desatenção de um pode ser o olhar acurado do outro, não há como errar. E num momento delicado da peça alguém decide retomar um momento histórico marcante e eles relembram no texto do discurso da vitória do ex-presidente e sem querer expõem nessa lembrança o medo que têm que é justamente o medo do poder da fala como ficará logo demonstrado e assim a peça segue e eles falam em “torneiro mecânico” e não percebem que a menção, a retomada numa peça dessa natureza da profissão do executado expõe certo elitismo e um preconceito que, como negar?, pode estar na base de tudo o que se passa hoje na esfera jurídica e, ainda que esse preconceito seja tantas vezes desmerecido e ridicularizado ele está, mais uma vez, escrito num pedido de prisão que denuncia o elitismo de alguém ou de uma classe que se recusa, não aceita, e isso pode estar na própria origem da peça que os três homens estão produzindo e por isso, justamente por isso, ela tem que ser também uma lição de moral e o terno se empolga e decide citar Nietzsche, logo ele, o filósofo que tradou da verdade e da mentira no sentido extra-moral e que fez a genealogia da moral e que mostrou a nossa condição demasiado humana e se esforçou para combater a ideia de Deus podia ser outro mas foi Nietzsche e parece que a simples citação de Nietzsche é infalível e automaticamente pode conferir uma estatura erudita à peça que a rigor não precisava de nada disso e agora a ele, a Nietzsche, se juntam outros elementos como o torneiro mecânico e o super-homem e  a noção de que nenhum homem é Deus e que portanto ninguém está acima da lei e tanto conhecimento, tanta coisa fluindo e colaborando e a peça ali nascendo e o lenço fino italiano tirado do bolso para limpar o suor da testa e tudo quase pronto alguém batendo o pé no chão com uma ansiedade mal disfarçada quase um nervosismo e outro com um entusiasmo quase juvenil quase irritado com o sapato do colega batendo no soalho mas com um leve sorriso de satisfação como quem diz saímos na frente e chegamos antes conseguimos e faltam apenas as assinaturas dos três e todos eles imaginando os nomes impressos no papel o papel circulando em sites e jornais os três nomes para a História e talvez por imperícia ou por afobação todos eles se esquecem que é muito fácil se empolgar com um texto e considerá-lo pronto e admirável antes do teste final um texto qualquer como este um texto pode ser tão enganoso e tudo foi tão fluido e tranquilo e eles sabem tanto do que estão falando têm tanta segurança que num erro quase dialético e quase imperdoável cometido justamente no momento em que pretendem dar a lição fundamental da peça não percebem que alguém escreveu Marx e Hegel e talvez eles tenham discutido antes e decidido pela associação errada e lido e relido depois e achado e concordado que era Hegel mesmo e não Engels e talvez eles não soubessem pois não são afinal intelectuais nem são obrigados a ler qualquer coisa fora os códigos todos e as atas e petições e processos e tudo isso já é tanta coisa tanto trabalho e nem deveriam ler mais nada mesmo são apenas representantes de uma elite bacharelesca que sempre fez peças como essa e mandou prender gente como torneiros mecânicos e não raro humilhou e torturou ou se esqueceu dessa gente na cadeia quando não matou porque antes podia matar e são essas peças que fazem o país ser o que é desde antes até do país ser um país e que pela ação desses homens e pela força do que essas peças representam e desencadeiam enfim se tornou o que agora não pode ser ameaçado nem por uma fala desse cara vai que o cara fala e mobiliza esse povo todo e um deles o mais obscuro dos três limpa um pequeno filete de gel que escorre discretamente do cabelo e reclama do ar condicionado do gabinete e fica quase sem graça quando percebe que nenhum dos outros dois prestava atenção a ele tão concentrados estavam na peça e agora essa mesma peça diante da qual os três quase relincham de felicidade também dá indícios de que o país nunca deixará de ser o que é e talvez esses homens nunca venham a saber a diferença entre filósofos e quem se importa num país onde o magistrado é tido como sábio mesmo que faça selfies com a camisa da seleção e quem sabe afinal quem é Engels ou Hegel e Nietzsche e talvez eles apenas tenham confundido os nomes parecidos como acontece com todo mundo e já é um mérito eles não terem errado ao escrever Nietzsche e é difícil mesmo aqui várias vezes Nietzsche Nietzsche Nietzsche e não se sabe se por lapso ou por ignorância a confusão dá margem a tudo e quando a peça finalmente é terminada e distribuída ela é quase instantaneamente desautorizada pela comunidade jurídica mas nesse país escrito por peças do gênero essa mesma peça ainda pode ser validada diante da propensão dos nossos juízes de camisas pretas que lembram outras camisas pretas e que são elas também essas camisas peças de mau gosto e diante da peça pronta os três relinchando de satisfação o que se lê e o que salta aos olhos é a confusão entre Engels e Hegel e o pior é a piada o escárnio a esculhambação diante de uma peça que deveria ser séria e foi um lapso normal pensam no seu íntimo todos eles e o mais orgulhoso chega a pensar com raiva em ler todo o Hegel que nunca leu apenas para encontrar uma passagem que transforme em acerto o erro que ele pensa vai marcá-lo pelo resto da vida e a reviravolta será uma lição a esses néscios que só sabem detonar e demolir tudo e que não respeitam a Justiça e no mais íntimo cada um dos três pensa em como os outros dois são idiotas e tudo isso apenas denuncia a formação dos nossos homens ilustres tidos como ilustrados e contribui para a nossa ignorância e para o obscurantismo em que estamos atolados todos nós eu você Moe Moro Larry Lula Engels Aedes Aécio Nietzsche Dilma Curly Fernando Henrique Hegel Cassio Brutus José Carlos Efeagacê e os Emepês paneleiros crianças sem merenda recém-nascidos com microcefalia e mais os que saíram e também os que ainda serão eliminados do Big Brother Brasil, coitados.

26 fevereiro 2016

Contribuições para o problema do vandalismo nos óculos da estátua de Drummond


1. Voltar a estátua de frente para o mar. É provável que o poeta dê as costas ao oceano em nome da verossimilhança. Nada mais inverossímil para um estátua. Assim, as pessoas que passassem pelo calçadão teriam menos tempo para pensar em arrancar os óculos de Drummond. Quem sabe, se sentariam ao seu lado em contemplação.

2. Mandar a estátua para uma praça de Itabira. Apesar do prejuízo de não ter o mar por perto, o que para a estátua não faria a menor diferença, é quase certo que os conterrâneos do poeta a tratariam melhor do que os passantes de Copacabana.

3. Retirar de vez os óculos de bronze. Deixar o poeta de bronze ver com seus olhos livres. De bronze.

4. Não tomar a estátua pelo próprio poeta. Deixá-la ali, sentada, sujeita ao acaso, ao vandalismo, esquecida e abandonada como milhares de monumentos.

5. Abandonar de vez a mimese e produzir uma estátua extraordinária em que os óculos não tivessem braços ou brechas e fossem fixados à cabeça de modo a ser impossível a retirada. A estátua, aliás, já está ganhando ares grotescos com os tumores provocados pelos maçaricos e pelos enxertos de metal nas têmporas.

6. Retirar a estátua do calçadão e, no lugar, colocar livros de Drummond com a sugestão de que sejam devolvidos como numa biblioteca circulante.

7. Substituir os óculos de bronze por óculos de plástico ou de outro material descartável. A prefeitura ou uma empresa poderia promover e explorar o marketing. As armações seriam "apropriadas" pelos passantes e, eventualmente, repostas pela administração. Isso geraria um ambiente de expectativa e de descontração em que alguns sortudos poderiam dizer, com alegria: "Consegui pegar os óculos do Drummond!"

11 janeiro 2016

David Bowie morreu e hoje as estrelas parecem muito diferentes


Como milhares de fãs deste lado do planeta, fui acordado hoje com a notícia da morte de David Bowie. Ainda na semana passada eu comentava com amigos sobre como Bowie salvou o rock quando, depois de diversas tentativas fracassadas, explodiu com o aparecimento de Ziggy Stardust no início dos anos 1970. Além do seu próprio trabalho, nessa mesma época ele ajudou a levantar a carreira de Lou Reed e, pouco depois, a resgatar um obscurecido Iggy Pop. Esse momento foi tão fértil na história do rock que virou tema de livros e de um instigante filme dirigido por Todd Haynes em 1998. O título, Velvet Goldmine, vem de uma canção de Ziggy Stardust.

Bowie foi um daqueles artistas cuja missão, mais do que produzir arte, era apontar caminhos, mas isso não aconteceu de modo programático. Ao contrário, a trajetória heterogênea foi fruto de sua inquietação. E a coerência que obteve ao explorar territórios tão diversos é fruto de uma incrível originalidade artística. Se num texto sobre um astro do rock ou da música pop estamos invocando a arte é porque Bowie ajudou a elevar o rock'n'roll a essa esfera. Ele foi um artista-síntese, desses que absorvem referências para transformá-las e assim criar um universo próprio, do qual é difícil ou quase impossível escapar.

Por isso teve, tem e durante muito tempo ainda terá uma influência duradoura. Que outro astro do rock ou da música pop foi afinal capaz de influenciar, além da música, também os costumes e a moda? Em sua biografia sobre o artista, Marc Spitz observou com muita felicidade, a partir da letra de "Heroes", que Bowie foi o homem que nos disse que poderíamos ser herois apenas por um dia ou para todo o sempre!

Logo depois do anúncio da morte, as pessoas começaram a compartilhar um post sobre a idade da Terra e a feliz coincidência de, num espaço de bilhões de anos, termos sido contemporâneos de David Bowie. Também nas redes sociais ainda pipocam as homenagens de famosos e anônimos nos mostrando o quanto David Bowie é nosso contemporâneo. Talvez seja justamente esse o seu principal legado. Bowie era atual porque parecia estar muitos passos à nossa frente, num pioneirismo que não tinha medo de enfrentar mudanças. A mudança, aliás, era um dos pressupostos de sua existência (“Vire e encare o estranho”). E acho que ele seguirá fazendo isso. Talvez nos confundindo. Agora, mais do que nunca, como um homem das estrelas esperando no espaço.

'Pilatos', de Carlos Heitor Cony, simboliza o Brasil de Delfim Netto

Pilatos , romance de Carlos Heitor Cony publicado em 1974, pode ser lido como um retrato do Brasil de Delfim Netto, um dos artífices da dita...