A solidão do gabinete
e os três homens engomados trabalhando no pedido de prisão que deve entrar para
a História. A cooperação amigável e a busca de referências precisas. A peça
final tem que ser, antes de tudo, correta. De fato, a noção de correção deve perpassar
todo o texto. Não pode haver margem para erros e contestações – quaisquer que
sejam. Sobretudo as jurídicas. Então esse trio de homens sérios e honrados,
esse trio que parece entalhado sente a necessidade de apontar referências morais
e filosóficas, pois não basta que eles tenham, se é que têm, referências morais
e filosóficas, de onde eles vêm, a matéria de que são feitos os obriga a tornar
as referências, quer tenham ou não, evidentes. É preciso mostrar certa
erudição, dar a ver, diriam alguns. Portanto essas referências precisam
aparecer e todos eles logo concordam, todos são unânimes em um ponto: essas
referências precisam ser marcantes, melhor se forem referências comuns também
ao próprio executado que sirvam para lembrá-lo de sua origem ou pelo menos de
coisas que no julgamento deles um dia ele, o executado, pareceu defender. O
trabalho com a escrita é complexo, há um momento em que as palavras fluem e
então é fácil nos empolgarmos com o desenvolvimento do texto, a coisa se erguendo
de modo tão límpido, tão fácil e pensamos que bastarão alguns retoques, uma boa
leitura mais tarde e estará pronto, é justamente a esses momentos que precisamos
estar atentos. Os três homens, porém, se atropelam justamente naquilo que faz com que todos os homens se
atropelem, a vaidade. Também têm pressa talvez, é preciso fazer isso logo não
se sabe o motivo ou a motivação por trás de tudo ainda que se possa suspeitar,
e também eles são três cabeças afinal seis mãos e seis olhos trabalhando, a
desatenção de um pode ser o olhar acurado do outro, não há como errar. E num
momento delicado da peça alguém decide retomar um momento histórico marcante e
eles relembram no texto do discurso da vitória do ex-presidente e sem querer
expõem nessa lembrança o medo que têm que é justamente o medo do poder da fala
como ficará logo demonstrado e assim a peça segue e eles falam em “torneiro
mecânico” e não percebem que a menção, a retomada numa peça dessa natureza da profissão
do executado expõe certo elitismo e um preconceito que, como negar?, pode estar
na base de tudo o que se passa hoje na esfera jurídica e, ainda que esse
preconceito seja tantas vezes desmerecido e ridicularizado ele está, mais uma
vez, escrito num pedido de prisão que denuncia o elitismo de alguém ou de uma
classe que se recusa, não aceita, e isso pode estar na própria origem da peça
que os três homens estão produzindo e por isso, justamente por isso, ela tem
que ser também uma lição de moral e o terno se empolga e decide citar
Nietzsche, logo ele, o filósofo que tradou da verdade e da mentira no sentido
extra-moral e que fez a genealogia da moral e que mostrou a nossa condição
demasiado humana e se esforçou para combater a ideia de Deus podia ser outro
mas foi Nietzsche e parece que a simples citação de Nietzsche é infalível e
automaticamente pode conferir uma estatura erudita à peça que a rigor não
precisava de nada disso e agora a ele, a Nietzsche, se juntam outros elementos
como o torneiro mecânico e o super-homem e a noção de que nenhum homem é Deus e que
portanto ninguém está acima da lei e tanto conhecimento, tanta coisa fluindo e
colaborando e a peça ali nascendo e o lenço fino italiano tirado do bolso para
limpar o suor da testa e tudo quase pronto alguém batendo o pé no chão com uma
ansiedade mal disfarçada quase um nervosismo e outro com um entusiasmo quase
juvenil quase irritado com o sapato do colega batendo
no soalho mas com um leve sorriso de satisfação como quem diz saímos na frente
e chegamos antes conseguimos e faltam apenas as assinaturas dos três e todos
eles imaginando os nomes impressos no papel o papel circulando em sites e
jornais os três nomes para a História e talvez por imperícia ou por afobação
todos eles se esquecem que é muito fácil se empolgar com um texto e
considerá-lo pronto e admirável antes do teste final um texto qualquer como
este um texto pode ser tão enganoso e tudo foi tão fluido e tranquilo e eles
sabem tanto do que estão falando têm tanta segurança que num erro quase
dialético e quase imperdoável cometido justamente no momento em que pretendem
dar a lição fundamental da peça não percebem que alguém escreveu Marx e Hegel e
talvez eles tenham discutido antes e decidido pela associação errada e lido e
relido depois e achado e concordado que era Hegel mesmo e não Engels e talvez
eles não soubessem pois não são afinal intelectuais nem são obrigados a ler
qualquer coisa fora os códigos todos e as atas e petições e processos e tudo
isso já é tanta coisa tanto trabalho e nem deveriam ler mais nada mesmo são
apenas representantes de uma elite bacharelesca que sempre fez peças como essa
e mandou prender gente como torneiros mecânicos e não raro humilhou e torturou
ou se esqueceu dessa gente na cadeia quando não matou porque antes podia matar e são essas peças que fazem o país ser o
que é desde antes até do país ser um país e que pela ação desses homens e pela
força do que essas peças representam e desencadeiam enfim se tornou o que agora
não pode ser ameaçado nem por uma fala desse cara vai que o cara fala e
mobiliza esse povo todo e um deles o mais obscuro dos três limpa um pequeno
filete de gel que escorre discretamente do cabelo e reclama do ar condicionado
do gabinete e fica quase sem graça quando percebe que nenhum dos outros dois
prestava atenção a ele tão concentrados estavam na peça e agora essa mesma peça
diante da qual os três quase relincham de felicidade também dá indícios de que
o país nunca deixará de ser o que é e talvez esses homens nunca venham a saber
a diferença entre filósofos e quem se importa num país onde o magistrado é tido
como sábio mesmo que faça selfies com a camisa da seleção e quem sabe afinal
quem é Engels ou Hegel e Nietzsche e talvez eles apenas tenham confundido os
nomes parecidos como acontece com todo mundo e já é um mérito eles não terem
errado ao escrever Nietzsche e é difícil mesmo aqui várias vezes Nietzsche
Nietzsche Nietzsche e não se sabe se por lapso ou por ignorância a confusão dá
margem a tudo e quando a peça finalmente é terminada e distribuída ela é
quase instantaneamente desautorizada pela comunidade jurídica mas nesse país
escrito por peças do gênero essa mesma peça ainda pode ser validada diante da
propensão dos nossos juízes de camisas pretas que lembram outras camisas pretas
e que são elas também essas camisas peças de mau gosto e diante da peça pronta
os três relinchando de satisfação o que se lê e o que salta aos olhos é a
confusão entre Engels e Hegel e o pior é a piada o escárnio a esculhambação
diante de uma peça que deveria ser séria e foi um lapso normal pensam no seu
íntimo todos eles e o mais orgulhoso chega a pensar com raiva em ler todo o
Hegel que nunca leu apenas para encontrar uma passagem que transforme em acerto
o erro que ele pensa vai marcá-lo pelo resto da vida e a reviravolta será uma
lição a esses néscios que só sabem detonar e demolir tudo e que não respeitam a
Justiça e no mais íntimo cada um dos três pensa em como os outros dois são
idiotas e tudo isso apenas
denuncia a formação dos nossos homens ilustres tidos como ilustrados e
contribui para a nossa ignorância e para o obscurantismo em que estamos
atolados todos nós eu você Moe Moro Larry Lula Engels Aedes Aécio Nietzsche Dilma Curly Fernando Henrique Hegel Cassio Brutus José Carlos Efeagacê e os Emepês paneleiros crianças sem merenda recém-nascidos com
microcefalia e mais os que saíram e também os que ainda serão eliminados do Big
Brother Brasil, coitados.