13 outubro 2016

No direction home


Sempre me interessei pela trajetória pessoal singularíssima que transformou um obscuro garoto de Minnesota, nos Estados Unidos, em um dos grandes artistas contemporâneos.

Em um curtíssimo espaço de tempo, Bob Dylan despontou como a grande revelação da música tradicional americana (folk music), foi rotulado como cantor de protesto e aclamado o porta-voz de uma geração (justo a dos anos 1960). Entretanto, ele deu um pé em tudo isso para fazer simplesmente o que queria – e não o que esperavam dele.

No álbum Highway 61 Revisited, de 1965, o compositor utilizou uma banda pela primeira vez, acrescentando elementos da música pop a suas canções. A opção estética e o talento do artista apontariam caminhos insuspeitos para a própria música pop.

No Direction Home, documentário de Martin Scorsese, apanha Robert Allen Zimmerman desde o primeiro som ouvido na infância até o final da longa turnê que fez com a banda entre 1965 e 66, já com o nome que o tornou famoso. Foi durante essas apresentações que as vaias se tornaram constantes, pois os puristas do folk e os fãs radicais do primeiro momento não aceitavam os novos rumos tomados pelo compositor. Ao longo de seus mais de quarenta anos de carreira, Dylan ficaria conhecido por se reinventar e recusar qualquer rótulo.

Documentando apenas esses primeiros anos e trazendo muito material inédito do arquivo pessoal do compositor, dezenas de entrevistas com companheiros de música e com o próprio Dylan, No Direction Home mostra a essência de todo verdadeiro artista: estilo e independência.

Na entrevista realizada nos dias atuais, o compositor pontua os acontecimentos iniciais de sua carreira com a lucidez habitual e sem qualquer tipo de didatismo ou arrependimento com relação a suas posições e opções artísticas. Seus comentários servem menos para esclarecê-las do que para reafirmá-las.

Os primeiros minutos do filme mostram uma controversa apresentação de Dylan e banda (The Band, cujo show de despedida foi filmado pelo próprio Scorsese em 1976 e lançado com o título de The Last Waltz) na Inglaterra. Ele está cantando justamente o hino "Like a Rolling Stone" e a plateia permanece imóvel. Dylan não fica alheio à recepção fria, mas mantém uma postura cool. É com base nessa apresentação que se desenrola todo o filme.

No Minnesota onde nasceu, o menino aspirante a cantor ouvia rádios de outras cidades durante a noite, o único período do dia em que se podia sintonizar as estações distantes. Começou a tocar piano e violão aos dez anos. “Eu queria aprender a maior quantidade de canções possível”. Durante a adolescência, montou bandas e passou a se apresentar em sua região. Foi nessa época que começou a difundir pequenas mentiras sobre sim mesmo.

A leitura de On the Road foi, como para tantos outros, determinante em sua formação. O universo dos loucos, dos loucos pela vida, dos beatos alucinados de Jack Kerouac fascinou o jovem que queria sair de uma cidade em que o frio era tanto que impedia qualquer ato de rebeldia. Na Universidade de seu estado, Dylan chegou a roubar grande parte da coleção de discos de um colega. “Para um expedicionário musical como eu era, deparar-se com aquela quantidade de discos era uma oportunidade única”.

Mais importante do que a obra de Kerouac foi a leitura do livro de seu herói na época, o compositor de protesto Woody Guthrie. Dylan soube que Woody estava doente e, no melhor estilo on the road, pegou carona para visitá-lo no sanatório em que ele se encontrava em Nova York.

Morando na cidade, o já então Bob Dylan passou a cantar em bares de West Village, onde conheceu personalidades como o também cantor de folk e ídolo Dave Van Ronk e o poeta beat Allen Ginsberg. Foi ali que depurou ainda mais sua personalidade artística. A certa altura do filme, um amigo chega a dizer: “Ele era uma espécie de esponja. Em quem esbarrava, absorvia alguma coisa.” E essas coisas podiam ser até mesmo trejeitos e sotaques. Conseguiu gravar o seu primeiro disco, mas foi com o segundo, The Freewheelin’ Bob Dylan, que despontou como o jovem gênio.

Consolidado como um cantor de protesto, participou de eventos históricos, tendo, por exemplo, se apresentado em Washington no dia em que Martin Lutter King proferiu o famoso discurso "I Have a Dream." Mas, mesmo com toda a convulsão social e as ameaças apocalípticas do período, Dylan estava preocupado e comprometido apenas com o seu trabalho. E não faria concessões à realidade histórica.

Alguns discos depois, viria o clássico Highway 61 Revisited. A sonoridade agora estava profundamente afetada. Era o disco da banda. O disco de "Like a Rolling Stone". E o disco que gerou a revolta dos tradicionalistas e as vaias nas plateias a partir da polêmica apresentação em conjunto no tradicional Festival de Folk de Newport. “Eu não entendia o motivo das vaias."

O que para Bob Dylan era uma evolução artística consciente passou a ser encarado como uma simples concessão ao mercado musical, como queriam aqueles fãs mais ortodoxos. Mas não era o caso. E as provas são as cenas em que o artista recusa toda a celebrização e a mitificação da indústria da música pop. As coletivas parecem absurdas e despropositadas. Alguém pergunta: “Por que você deixou de ser um cantor de protesto?” A resposta é simples e direta: “Quem te disse isso? Eu nunca deixei de ser um cantor de protesto. Todas as minhas canções são de protesto.” Em outra ocasião, ele se recusa a posar com os óculos escuros colados aos lábios. E para um fã ávido por um autógrafo: “Você não precisa do meu autógrafo. Se precisasse, eu te daria”.

Aqui reside o maior mérito do documentário: o desenvolvimento pessoal do artista, a opção pelos caminhos estéticos que ele queria percorrer em contraposição às tentativas de enquadrar uma personalidade tão complexa em esquemas pré-determinados para fazer dele mais um ídolo pop como os Beatles, por exemplo, tinham se tornado. E, se mesmo assim, Dylan se tornou um mito, foi graças a um talento descomunal que nunca se dobrou diante de nenhum esquema.

O filme termina pouco antes de Dylan sofrer o acidente de moto que usaria como desculpa para deixar os palcos por cerca de oito anos. É um Dylan de olhar cansado que anuncia no backstage querer voltar para a casa.

Poucos diretores conseguiriam um resultado tão autêntico ao tentar captar a essência do compositor, como Martin Scorsese conseguiu. Poucos artistas possuem tanta consciência e lucidez sobre seu trabalho a ponto de defini-lo em sentenças tão simples e evidentes, como faz Bob Dylan no filme: “Eu nasci muito longe do lugar onde eu deveria estar. Então, de certo modo, estou sempre voltando para casa.” (22 de junho de 2006)

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