21 junho 2013

Conversa com o tio Alonso

Meu tio Alonso anda intrigado com a minha reação diante das manifestações que tomaram as ruas do Brasil nestes dias. 

– Não era você que vivia reclamando que o povo não ia às ruas? – ele perguntou.

– Mas a coisa já está ficando sem controle.

– É quase impossível controlar a massa, os protestos são legítimos. 

Tio Alonso lutou contra a ditadura. Ele viveu na clandestinidade no período mais duro do regime, chegou a ser preso e torturado. Por isso apoia toda e qualquer manifestação popular.

– O que acha que podia acontecer se os manifestantes invadissem o Congresso ou até mesmo o Planalto, tio? 

– Provavelmente uns seriam repelidos, outros presos.

– Mas e se, num extremo, eles se vissem cara a cara com a presidenta, o que fariam? (Tio Alonso gosta muito da língua portuguesa, por isso com ele fico à vontade para usar a palavra no feminino sem sentir aquele olhar enviesado que os críticos direcionam para Dilma.)

– Não dá pra saber, mas, mesmo num ato de radicalismo extremo, a democracia seria fortalecida. 

– Sei não... E a expulsão dos militantes de partidos das passeatas?

– Esses jovens foram criados ouvindo todo mundo falar em corrupção generalizada, em falta de investimentos em saúde e educação. Também não têm educação ou formação política, são muito midiatizados. Além do mais, nossa sociedade é muito conservadora. Eles vão aprender que os partidos são apenas a organização das vozes divergentes da comunidade da qual eles fazem parte. Em sociedades como a nossa, não dá pra haver representação individual. O que é preciso é uma reforma política. 

Otimista o tio Alonso. Eu confesso que ando bastante preocupado com as manifestações totalitárias e a falta de direcionamento dos manifestantes. Tio Alonso diz pra eu não me preocupar.

- E se a repressão à violência justificar uma intervenção militar? E se vier uma ditadura? – eu insisti.

- Difícil, mas saberemos como combatê-la.

18 junho 2013

A democracia brasileira é uma criança


Havia crianças na concentração para o protesto desta segunda-feira no largo da Batata, em S. Paulo. Diante do ocorrido na semana passada, podia-se pensar que era uma irresponsabilidade, mas a sensação geral era de paz e as mães cuidavam de vestir e maquiar os filhos com as cores do Brasil. 

A polícia apenas protegia as áreas das intermináveis obras do largo para que a multidão não transformasse entulhos e material de construção em armas. Fazia o que dela se espera, garantindo a ordem pública e a liberdade de expressão. 

Os manifestantes, em sua imensa maioria estudantes, logo deixaram clara sua insatisfação com a condução da coisa pública no país. As bandeiras que flamulavam no miolo da concentração motivaram os primeiros gritos contrários aos partidos políticos. Sem polícia e sem partido, a multidão seguiu pela Faria Lima com destino incerto. 

Ouviram-se gritos contra o aumento das passagens, contra a presidenta, contra a Pec 37, contra a Rede Globo, o prefeito, José Luiz Datena e a polícia. Não houve pichação, quebradeira ou violência. E logo se notou a coincidência de não haver policiais por perto. 

Também foram distribuídos panfletos anônimos contra os gastos de dinheiro público com as copas, contra a corrupção, a favor do porte de armas, da prisão perpétua etc. etc. Centenas de cartazes ilustravam as insatisfações e lembravam episódios vergonhosos e impunes como o massacre do Carandiru. 

Tudo é do jogo, mas, se por um lado chamava a atenção o número de pessoas, estimado em cerca de 65 mil, por outro impressionava a amplitude da insatisfação. Era tamanha que não se sabia para aonde ir. E os destinos da passeata foram se dividindo em direções opostas.  

Um dos achincalhados, o comentarista político Arnaldo Jabor, tinha revisto a avaliação inicial negativa que fizera do movimento Passe Livre e, desde de manhã, louvava a causa, não sem alertar para o perigo do vazio das manifestações.

De fato, diante de tantas aspirações genéricas, a sensação é de que a coisa se esvazia, mas não se enganem. Há, sim, um grito e ele é fundamentalmente contrário à velha política. Ainda não se sabe qual é a nova. Uma coisa, porém, é certa: ela começa quando o povo vai às ruas.

03 junho 2013

O livro sobre nada

O inglês John Gledson, estudioso da obra de Machado de Assis, cita na introdução de “Papeis Avulsos” que o francês Gustave Flaubert manifestou em uma de suas centenas de cartas o desejo de escrever "um livro sobre nada". 

Aí está a sabedoria do grande escritor. Escrever um livro sobre nada deve ser a pretensão de todos os autores. A meu ver, aliás, é precisamente esse desejo que diferencia a grande literatura das demais. 

Evidentemente escrever sobre nada é uma utopia, uma "aspiração paradoxal", como observou Gledson. A palavra, sabemos, é carregada de sentidos. Mas escritores sérios buscarão, sempre, o livro sobre nada como projeto inalcançável.

Flaubertianos célebres como James Joyce chegaram perto. É conhecida a boutade do irlandês como resposta a uma mulher que lhe perguntou sobre o que era um de seus livros, não sei se “Ulisses” ou “Finnegans Wake”: “o livro não é sobre alguma coisa, minha senhora, o livro é a coisa”. 

Vargas Llosa, outro devoto do francês, mesmo tendo recebido distinções como o Nobel de literatura, diz que sua grande obra, a que deve ficar, ainda está por vir. Do que ele está falando se não do nada?

O próprio Flaubert, aliás, dizia que, se pudesse, recolheria todas as edições disponíveis em seu tempo de “Madame Bovary”, a obra que o consagrou. E não se falaria mais nisso. 

É bom que se diga que escrever sobre o nada é muito diferente de nada escrever. A aspiração de Flaubert é apenas a evidência de que, para o artista, o processo em si é mais importante do que o resultado.

28 maio 2013

"Cuitelinho" e o elogio do anonimato


Na entrevista que deu ao Roda Viva há duas semanas, o escritor peruano Mario Vargas Llosa contou que, durante as pesquisas para o seu livro "A Guerra do Fim do Mundo", que trata do conflito de Canudos, viu no interior da Bahia violeiros entoando canções da Idade Media portuguesa preservadas durante séculos no território isolado do sertão nordestino.

“Cuitelinho”, composição tradicional do sudoeste do Brasil cujos versos anônimos receberam a contribuição de Paulo Vanzolini, pode não ser tão antiga quanto as canções que maravilharam Llosa, mas é um exemplo de permanência cultural que impressiona, para além da beleza, pelo que sua história tem de originalidade e de acaso.

A começar pelo título, uma revelação em si. “Cuitelo”, segundo o dicionário eletrônico Aulete, é “um dos nomes para beija-flor, em São Paulo”. Ou, de acordo com o Pequeno Dicionário Brasileiro da Língua Portuguesa (S. Paulo, Companhia Editora Nacional, 1972), um “brasileirismo de São Paulo”, “denominação genérica dos beija-flores, entre os caipiras”. “Cuitelinho” seria, assim, um pequeno beija-flor ou um “beija-florzinho”. 

Além do pássaro, a composição original, ou pelo menos a composição que chegou até nós, também faz referência a uma revolução no Paraguai. Como não sabemos com precisão a data em que a letra foi escrita, não podemos saber de que revolução ela trata, se a da independência do país (em 1811), se a da guerra que também envolveu Brasil, Argentina e Uruguai (1864-1870) ou ainda a Guerra Civil paraguaia de 1947.

Em diversas ocasiões, como nos programas Vox Populi e Ensaio, da TV Cultura, Vanzolini contava que o amigo Antônio Carlos Xandó, um prosaico fiscal de rendas “tarado por música caipira”, ouvira a melodia e os versos cantados por um barqueiro chamado “Nhô Augustão” em alguma parte do rio Paraná, divisa natural entre São Paulo e o atual estado de Mato Grosso do Sul que, na época, integrava o Mato Grosso. Havia apenas duas estrofes, que bem podiam ser as originais ou as sobreviventes de uma composição mais longa:

Cheguei na 
Beira do porto onde as ondas se espaia
As garça
Dá meia vorta e senta na beira da praia
E o cuitelinho não gosta
Que o botão de rosa caia, ai, ai, ai

Quando eu vim
Da minha terra despedi da parentaia
Eu entrei 
No Mato Grosso e dei em terras paraguaia
Lá tinha a revolução
Enfrentei forte bataia, ai, ai, ai

O desaparecimento e a recriação, geralmente anônima, de trechos de poesias ou canções é uma característica da tradição oral. No caso de “Cuitelinho”, sentindo a necessidade de mais letra para ser cantada, Vanzolini deu a sua contribuição. Como bem observou Marcelo Leite na Folha de S. Paulo por ocasião da morte do compositor, “estão ali talvez os versos mais formosos de uma das mais bonitas melodias do cancioneiro nacional”:

A tua
Saudade corta como aço de navaia
O cora-
Ção fica aflito, bate uma, a outra faia
Os óio se enche d'água
Que até a vista se atrapaia, ai, ai, ai

No Ensaio, reprisado pela TV Cultura em homenagem a Vanzolini, o autor falou, sem falsa modéstia, da dificuldade em fazer a rima em “aia” (a pronúncia caipira das palavras em "alha", de "navalha" e "atrapalha", por exemplo). Questionado sobre os versos de sua preferência, disse gostar mais da segunda estrofe, a das “terras paraguaias”. 

O problema, porém, aparece em “Um homem de moral”, documentário sobre a música de Vanzolini dirigido por Ricardo Dias. Nele, sem se importar com os conceitos de verso e estrofe, o cancionista diz ser o autor dos dois últimos versos de “Cuitelinho”: "o que não é meu é só o primeiro verso, os outros dois são meus". Assim, podemos supor que os versos sobre a o Mato Grosso e o Paraguai também teriam sido compostos por ele.

Em outro programa, Brasilianas.org, da TV Brasil, Vanzolini diz que deu uma “arrumada” no “Cuitelinho”: “Nhô Augustão tinha esquecido de uns versos, eu tinha esquecido de outros, eu dei uma arrumadinha e... tá aí, né?”

Ainda no Ensaio, o compositor revelou ter tomado conhecimento de uma nova estrofe da canção, anos depois dela ter se tornado célebre com suas dezenas de regravações:

Vou pegar
O teu retrato e vou botar num medaia
Com o ves-
Tidinho branco e o laço de cambraia
Vou pendurá no meu peito
Que é onde coração trabaia, ai, ai, ai

Diante disso e da contradição sobre a segunda estrofe cabe a pergunta: teria ele ouvido ou escrito esse último trecho adicional? Trabalhador incansável e perfeccionista que se demorava anos sobre uma letra ou rima, é difícil e talvez inútil saber o tamanho da inegável contribuição ou “arrumação” de Vanzolini em “Cuitelinho”. Teria ele feito uma nova estrofe, quem sabe insatisfeito com o comprimento da letra?

Não podemos saber. O fato é que, como aquelas canções do sertão de Vargas Llosa e ao contrário de tantas outras que se perderam, “Cuitelinho” sobreviveu. E Vanzolini ajudou a eternizar a bela melodia e os versos do anônimo letrista que, também não saberemos, podem ter sido a mesma pessoa.

(Foto: Stock.xchng)

29 março 2013

Sexta-feira Santa


Nasci numa Sexta-feira Santa, há 35 anos. Mas não creio que seja por isso que desenvolvi uma relação especial com a data, sempre vivenciada com muita contrição e respeito lá em casa.

Por ser um feriado, era comum que passássemos o dia em Itu, onde viviam meus avós maternos. E em Itu, com suas dezenas de igrejas e inúmeros rituais ao longo do ano, as palavras tradição e catolicismo têm uma força muito grande. Talvez por isso sempre me pareceu que parte da cidade não pertencia àquele tempo, era como se o lugar estivesse deslocado. E até hoje eu associo Itu aos filmes épicos que marcaram a minha infância, como “Os Dez Mandamentos” e “Ben-Hur”, freqüentes na programação da tevê durante aqueles dias. 

Na Sexta-feira Santa, meu avô jejuava o dia todo, diferentemente de nós, que simplesmente não comíamos carne. Lembro dele meio retirado, estranhamente calado, a barba por fazer, hábito que não se permitia em nenhum outro dia do ano. 

Minha avó contava que, quando pequena, a paixão era vivida na quinta-feira, quando as pessoas saiam de casa pela manhã sem sequer lavar o rosto e iam para o rio, onde se purificavam. Essa troca das datas fazia sentido para mim já que, reza a Bíblia, Jesus teria ressuscitado ao terceiro dia.

Em dado momento, minha mãe chamava a minha atenção para olhar para o céu. No meio da tarde, ela dizia, o tempo começa a mudar, o céu fica carregado e as nuvens negras aparecem para para marcar o momento em que Jesus entregou seu espírito.

Pode parecer superstição ou misticismo, mas não me recordo de Sextas-feiras Santas em que isso não ocorreu. O dia, assim como o de hoje, era estranho e arrastado. Meio sem entender, mas sempre respeitosos, minha irmã e eu esperávamos até o domingo, quando, em frente à Praça da Matriz, dava-se a “explosão do Judas”. Tradicionalmente, a malhação ocorre no Sábado de Aleluia, mas em Itu, em algum momento, a desforra tornou-se um espetáculo pirotécnico encenado no domingo de Páscoa.

No alto de um poste, vestido de vermelho, havia um diabo com um sorriso maligno e olhar amedrontador. Embaixo, um Judas arrependido. Não me lembro se havia uma contagem regressiva, mas, em meio a fogos, o diabo descia o mastro e montava sobre os ombros de Judas. Então ambos os bonecos se soltavam e ficavam balançando no ar por alguns segundos até que, de repente, explodiam, espalhando-se pelos ares. Posso estar enganado, mas creio que da fumaça surgia um Cristo ressuscitado e glorioso. 

A multidão em torno da praça vibrava com o traidor vingado pelo artista-fogueteiro que inventou o espetáculo. Tomávamos o caminho de volta passando por ruelas com calçadas de varvito e casarões coloniais. E, não raro, trazíamos um pedaço de Judas ou do diabo como troféu.

'Pilatos', de Carlos Heitor Cony, simboliza o Brasil de Delfim Netto

Pilatos , romance de Carlos Heitor Cony publicado em 1974, pode ser lido como um retrato do Brasil de Delfim Netto, um dos artífices da dita...