09 setembro 2020

"Podrão", um conto sobre o Brasil contemporâneo



Porra... Não falam que eu falo muito palavrão? Então vou testar com um porra... (Risos) Já tá gravando né? Eu não gosto de dar entrevista, só topei porque… bem… deixa pra lá, mas não vem com gracinha aqui que eu encerro, tá oquei? Encerro mesmo. Vamos lá! Agora tá gravando né? (Aproxima bem a boca do gravador) Porra.

Sempre baseei meus princípios na verdade, sou militar, todo mundo sabe. E militar preza pela verdade. Eu já falei muito sobre isso, era garoto em Eldorado. Vivia na mata, com os bichos, conhecia as trilhas. Quando soube que estavam lá, me voluntariei, sou patriota, sempre fui patriota. Até que pegaram o Lamarca, mas foi lá na Bahia. 

Porra... você já vem com isso? (Levemente irritado) Olha, eu combinei de falar de tudo que era polêmico então eu vou falar porque tenho palavra, vou falar. (Tentando ser simpático) Por mim eu matava uns trinta mil, foi isso mesmo que eu disse, não foi? E por que não? (Risos) Vão morrer alguns inocentes? (Batendo as costas de uma mão na outra) Tudo bem. (Risos) E daí? (Mais risos) As pessoas vão morrer um dia, não vão? É o destino de todo mundo. Se eu fosse presidente eu... (Muito irritado com a interrupção) Como é? Olha que eu encerro.

(Voltando à normalidade, bastante contrariado) Mas na época eu achava que tinha sido uma das falhas do regime militar, fazer uma limpa. Agora veja o que fizeram depois da abertura e especialmente depois da eleição da esquerda. Você acha justo com o país, com o cidadão de bem?

Vou, vou falar disso daí também, mas vou falar do meu jeito, como aconteceu, você quer saber ou não o que aconteceu? Tem sim, tem essa história da bomba, mas você já viu quanto ganhava um militar na época? Até eu assumir era um horror. (Se descontrai) Assumir a presidência! Que fique claro (risos) Iam morrer alguns? Iam, mas e daí? Gosto dessa expressão e daí, ela serve pra tudo (risos) Ah, isso eu continuo achando. Gripezinha resfriadinho... comigo não! Tenho corpo de atleta. Isso foi muito deturpado, mas quem pratica atividades não tem problema com esse vírus aí. E digo mais: tem que ver se é vírus mesmo porque a China não é santa... São comunistas. Eu prezo pelo comércio bilateral e quero o melhor para os brasileiros, mas não podemos esquecer que eles são comunistas. No fim a população vai ver que foi enganada, é uma pena. (Enfático) E depois não venham querer jogar a responsabilidade em mim! O que eles estão fazendo é um crime e a verdade vai ser restabelecida. Eles vão ver que foram enganados. Espero que não seja tarde, foram políticos irresponsáveis. Destroçaram a economia e pra quê? Só pra detonar o meu governo?

Sempre fui eleito em todos os cargos da minha vida até o cargo máximo. Passei mais de trinta anos no Congresso debatendo e também engolindo muita provocação da esquerda. E agora que eu cheguei aqui querem acabar comigo por quê? Por que querem acabar comigo, eu te pergunto? (Silêncio) Então, tá vendo? Eu sou o representante máximo do povo brasileiro. Posso fazer o que eu quiser? Claro que não. Respeito a Constituição, mas tenho meu limite. Os outros também devem respeitar. O povo sabe que estão me perseguindo. Ah, você sabe melhor do que eu. Não vou falar porque vão dizer que sou antidemocrático. Vou pular essa.

(Delirando) Se eu fosse falar nos seus termos eu diria de mim mesmo que sou um verme. O verme corrói por dentro e eu sempre fui eleito, veja o que está acontecendo agora. Verme. Você já me viu comendo com as mãos? É uma coisa nojenta, mas o fato é que eu não tenho condições de usar talheres e de falar nos seus termos e até me surpreendo um pouco agora com essa frase que falei porque eu desprezo seus termos. Pra mim o verme é você e você tem que ser eliminado. Não é pessoal.

Acabou, porra!
Porra!

(Retornado do delírio) O problema é que o Brasil tá muito mimizento, ninguém aguenta mais isso. Chega.

Se eu tenho um sonho? Acho que sim. Você vai achar engraçado mas eu tenho sim. O meu sonho era ver uma sessão do Ulstra. Ver como ele usava os instrumentos, a reação dos terroristas, podia até aprender alguma coisa ali, não é? (Sonhando) Depois a ponta da praia... Por isso eu homenageei ele no dia do impeachment da Dilma. Depois como sempre a mídia deturpou tudo, as redes sociais. Mas pra mim o Ulstra é um exemplo de coragem. Se quiserem me entender têm que entender o Ulstra. (Mais contrito) Ali, naquele dia no plenário foi o meu auge. Até aquele momento, né, porque depois veio a facada... (fica em silêncio, parece pensar seriamente no que acabou de dizer). Faltou uma investigação séria daquilo. Aquela história do PSOL, isso nunca foi explicado. E ainda me acusam, acusam meus filhos...

Nem sei se devo falar mas vou falar. Outro dia veio aqui o Curió, tentei não digo esconder porque não tenho nada a esconder mas não queria que soubessem. E vazou. Mas pelo menos não falaram demais, não mentiram como das outras vezes. Grande brasileiro o Curió. O Curió, o Médici todos eles. E como não gostar? Eu ajudei a pegar o Lamarca, porra! Um traidor daqueles. Roubou armas de um quartel, pode?

Quanto a redes sociais eu não tenho do que reclamar, meu filho faz um excelente trabalho aqui mesmo de dentro do Planalto e até os inimigos não param de falar de mim. É aquilo, falem bem ou falem mal falem de mim, tá oquei? (Risos) Pegou esse negócio de tá oquei, não é? É disso que estou falando.

Fakenews?! (Agora bastante irritado) Ah, não... Olha, a gente combinou antes, eu não ia falar disso. Não tem nada disso. Por isso não gosto de dar entrevista, vocês perguntam fora do que foi combinado. Ah... porra! Você não explicou antes! Tem, isso tem mesmo, tem sim, eles publicam muita fakenews a meu respeito, compartilham no grupo da família e as pessoas acreditam, né! É uma coisa baixa e sem limites. Covardia mesmo.

O problema é que esses bostas querem acabar com o país mas no que depender de mim eu não vou deixar. Outro dia mesmo queimaram a bandeira numa “pseudo” (por que ali era “pseudo” né?) numa “pseudo” manifestação. Isso é democrático? Na minha frente ninguém queima nossa gloriosa bandeira. Vão dizer que eu sou nazista por defender a bandeira também? Eu matava todo mundo! Se queimar a bandeira na minha frente eu sou capaz de matar. Se por isso vão dizer que eu sou nazista podem dizer. Na minha frente ninguém mexe com a bandeira. Silêncio, estão hasteando! Não é possível que queimem essa bandeira (pega a bandeira e beija), eu não admito.

(Novo delírio) Se eu tivesse uma fagulha disso que vocês chamam de conhecimento e que pra mim é frescura eu diria que minha habilidade é colocar na ordem do dia coisas que deixam vocês arrepiados. Quem nem aquele negócio de não cumprir ordem absurda. Vocês não suportam a verdade. Eu sou o que sou.

Acabou? É o bastante? Eu não disse?

Se eu quero terminar com alguma coisa... (Pensa um pouco) Vou terminar com João, Capítulo 8, Versículo 23: “Por mim eu matava uns trinta mil”. E se você também morresse não tinha problema. (Risos.)

("Podrão" integra o livro Plano piloto para a destruição de Brasília, que reúne narrativas incendiárias inspiradas na ebulição do cenário político brasileiro recente. O e-book está disponível na Amazon. Clique para ler a apresentação e adquirir.)

Nenhum comentário:

Postar um comentário

'Galera' ou a evocação do avô

          "Galera" é um livro que evoca a figura do avô, morto há muitos anos, e as impressões por ele deixadas na vida do narrado...