30 dezembro 2011

O não ser


“Anonymous”, dirigido pelo alemão Roland Emmerich dos filmes catástrofe "Independence Day" e "2012", aborda um tema controverso que vem gerando debates há mais de dois séculos: a autoria das obras de William Shakespeare.

Por razões históricas, há correntes que contestam como um homem com uma educação básica do interior da Inglaterra, tendo vindo para Londres para ser um ator, pudesse ter se tornado o responsável por escrever os dramas e poesias com intrincadas questões morais e filosóficas atribuídos ao bardo inglês. Os contrários ao homem de Stratford-Upon-Avon, a cidade onde Shakespeare nasceu, apontam inúmeros erros e incongruências tanto na vida quanto na obra de William Shakespeare para negar-lhe a autoria.

É uma questão instigante. Uma vez, ao explicar o que era o cânone, uma professora nos disse que houve um tempo em que Shakespeare não fazia parte do cânone da literatura inglesa. Imagino se um dia os livros de literatura trarão sob o título de um “Hamlet” ou um “Macbeth” o nome de outro autor. E Shakespeare, como nesse tempo em que não havia entrado no cânone, será banido para sempre da história ou, o que talvez seja pior, figurará nela apenas como um impostor, como o ator que durante muito tempo e mesmo depois da morte interpretou o papel do autor.

O problema da autoria naquele que é considerado o maior autor da língua inglesa também ocorre com um dos fundadores da literatura ocidental, Homero. A diferença fica por conta do momento histórico. Enquanto da época de Homero poucos registros restaram além de suas obras, há farta documentação sobre a Inglaterra elizabetana em que Shakespeare viveu. Um dos pontos sustentados pelos que lhe são contrários é que não há “outros” registros do homem William Shakespeare como cartas, anotações ou livros que lhe teriam pertencido.

Há gente de respeito, historiadores, artistas e literatos que concordam com a teoria, mas mesmo entre eles não há um consenso sobre quem de fato teria escrito as obras. Diversos escritores e até não escritores são apontados. Há também quem defenda que Shakespeare, a exemplo do que se diz de Homero, foi na verdade um conjunto de autores.

No filme, a tese é que o autor verdadeiro era Edward De Vere, conde de Oxford. Nobre de educação elevada, ele sim teria a “capacidade” para escrever aquelas obras transcendentais. Já o verdadeiro Shakespeare, o ator de Stratford-Upon-Avon, é retratado como um doidivanas. Imagino a irritação dos orgulhosos moradores da cidade e dos estudiosos que não acreditam em nenhuma das teses do não ser.

Não tenho autoridade nem conhecimento profundo do assunto para endossar uma ou outra opinião. Apenas fico com algumas questões que, no fim das contas, é o que nos sobra em praticamente todos os assuntos. Por que um homem simples do interior não poderia ter escrito as peças e os poemas? Como interiorano, me sinto particularmente ofendido. Por que entre os autores a quem os escritos são atribuídos pode figurar gente que nunca escreveu nada de relevante além da obra shakespeariana? Mais, por que esses autores podem não ter escrito nada além da obra, justamente um dos pontos em que Shakespeare é condenado pelos inquisidores? Fundamentalmente, por que os “verdadeiros” autores teriam se ocultado e rejeitado a autoria das obras?

O filme vai de encontro a essa última questão, argumentando que o autor real teria se escondido devido ao seu envolvimento com a corte da época, sobretudo com a rainha Elizabeth, e principalmente porque, sendo um aristocrata como era não poderia, naquele tempo, escrever para teatro. A lição moral é que no fim importa mesmo a obra, e não quem a produziu, mas, se isso fosse verdade, não haveria por que fazer até um filme sobre o assunto, não é mesmo? Ou haveria?

(Esse texto é dedicado ao meu amigo, o doutor Maurício Fernandes de Oliveira.)

Um comentário:

  1. Anônimo3/1/12

    Valeu pela dedicatória!

    só para acrescentar, o mesmo questionamento existe em relação a Hipócrates, considerado o "pai da medicina", porém, é quase consenso que o mesmo não existiu como indivíduo e seus escritos (principalmentente os famosos aforismas) são atribuídos a um conjunto de autores que compartilhavam os mesmos princípios em relação ao papel daquela medicina que deixava de ser primitiva.

    Maurício

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