16 agosto 2024

'Pilatos', de Carlos Heitor Cony, simboliza o Brasil de Delfim Netto


Pilatos
, romance de Carlos Heitor Cony publicado em 1974, pode ser lido como um retrato do Brasil de Delfim Netto, um dos artífices da ditadura militar morto na última segunda-feira. O livro conta a história de um homem que, após sofrer um acidente, tem o pênis extirpado e passa a circular como um morador de rua pela cidade do Rio de Janeiro. Nessas andanças, carrega, num vidro de compota, o resíduo de sua virilidade.

Apesar do estilo sóbrio, ao mesmo tempo contido e poético que marca os outros trabalhos do autor, tudo nesse romance beira o sórdido. Sendo um autor estabelecido e um jornalista notório, perseguido pela ditadura mas visto com ressalvas pela esquerda, é como se Cony decidisse escancarar de uma vez o achincalhe, a esculhambação e o descaso de um país em franco declínio moral e civilizatório. 

Além do mutilado, acompanham suas aventuras um fascista com um furor sexual irrefreável e contista diletante, um velho golpista aspirante à nobreza, um morador de rua não menos velho e faminto para quem tudo é comida, um maconheiro e guerrilheiro cansado e um chinês perdido e sodomizado. Cada um deles pode ser entendido como uma metáfora de um país castrado, com uma elite cheia de artimanhas e descolada da realidade, uma esquerda perdida entre a guerrilha urbana e o desbunde e um povo sem voz que paga o preço por decisões que ignora. 

Em um primeiro momento, o personagem castrado se associa ao fascista, um homem chamado Dos Passos que faz pequenos trabalhos sujos para os militares e vive com ideias mirabolantes como transformar o pênis em conserva em astro de cinema. Em suas andanças, eles vão parar em uma igreja de subúrbio com um violino afrodisíaco antes de acabarem presos com aquela trupe caricata. 

As aventuras picarescas, o centro fétido de uma cidade cheirando a fuligem, as casas de subúrbio deterioradas e abandonadas, os botecos encardidos, os velhacos, o fascismo, a brutalidade policial, a picaretagem, tudo dá uma ideia da face real do “milagre brasileiro”. 

Em 1967, Cony tinha publicado Pesach: A Travessia, um romance engajado em que o protagonista, um escritor de sucesso como o próprio Cony, inicialmente indiferente à ditadura, acaba aderindo à luta armada. O livro foi lido como uma crítica de Cony ao Partido Comunista, que tinha decidido não pegar em armas contra os milicos. 

Mas se naquele romance o engajamento era latente, em Pilatos, o aparente desbunde e o descaso do autor com a literatura e a realidade (e por vezes com o próprio realismo) atingiria em cheio o tecido social, sem ser panfletário. Não por acaso, era o livro favorito dos tantos que o próprio Cony escreveu até aquele momento e que voltaria a escrever apenas vinte e um anos depois. 

Pilatos foi um basta de Cony à literatura. Em entrevistas, ele se dizia cansado e declarava que queria aproveitar a vida. Mas pode ter sido uma espécie de basta à própria ditadura, como se a realidade fosse tão sórdida e absurda que a única representação possível dela fosse o silêncio. Coincidência ou não, ele só voltaria a publicar em 1995, quando o Brasil vivia a ilusão de que aqueles tempos sombrios tinham ficado para trás.

01 junho 2021

'Galera' ou a evocação do avô

    


    "Galera" é um livro que evoca a figura do avô, morto há muitos anos, e as impressões por ele deixadas na vida do narrador. Trata-se de uma ficção, em que o autor recorre a memórias e a elementos biográficos e autobiográficos para recriar um mundo interiorizado e desaparecido.

    Confira abaixo a apresentação do livro.

    A perplexidade provocada pela descoberta de um caderno desperta no neto o desejo de reconstituir a vida do avô, morto há muitos anos. 

    Entre sonhos e memórias, o narrador resgata a trajetória individual, familiar e profissional de um homem comum, passando por episódios corriqueiros e marcantes que têm como pano de fundo os governos de Getúlio Vargas, a Ditadura Militar e a redemocratização. 

    As visitas a casa dos avós em Itu, a rotina diária, a presença da irmã e as figuras do pai e da mãe completam o cenário, que constitui um retrato da vida de uma família paulista nos anos 1980 e 90, numa dosagem certa do sentimento da perda e da percepção da marca profunda deixada pelo avô na vida e no espírito do neto.

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28 maio 2021

As metamorfoses (anti-Kafka)

    Quando certa manhã Gregor Samsa despertou de sonhos intranquilos, viu-se em sua cama metamorfoseado num inseto monstruoso.

    Mas ele não foi o único.

    Pouco depois de o caixeiro-viajante viver sua tragédia pessoal e familiar, outras transformações começaram a ocorrer.

    Logo as metamorfoses tornaram-se incontroláveis. Expulsos, abandonados, fugitivos, os insetos ganharam as ruas e começaram a acasalar entre si, botando ovos por toda parte. Não demorou para criarem uma prole tão numerosa quanto incontável.

    Está claro que, passada a reação inicial de terror e melancolia das famílias, que aliás seguiu quase passo a passo as reações da família Samsa, os humanos entenderam o que se passava e procuraram matar todos os insetos que podiam. No começo pareceu uma brincadeira divertida, mas logo os métodos de se tornaram exercícios de extermínio também em si monstruosos.

    Era tarde. Os homens não demoraram a reconhecer seu fracasso e, um a um, foram devorados. Até o último.

19 maio 2021

O fogo de Kafka

    Ao mandar queimar sua obra inédita, Franz Kafka se apropriou do direito universal dos escritores de destruir a própria obra. Depois que Kafka foi salvo das chamas, toda disposição de escritor pelo fogo não passa de uma emulação kafkiana.

02 março 2021

Nelson Rodrigues e Guimarães Rosa (1)


    Vivendo num Rio de Janeiro pra lá de literário e tendo muitos amigos em comum, é surpreendente que Nelson Rodrigues e Guimarães Rosa jamais tenham se encontrado. Alguém que conheça minimamente suas obras pode argumentar que faz sentido, pois eles não podiam ser mais diferentes e, num extremo, quase opostos. Enquanto o primeiro era incrivelmente urbano (ou suburbano), o outro não podia ser mais sertanejo.

    Mas mesmo a distância, como a flor de obsessão que era, Nelson Rodrigues nunca deixou de acompanhar os movimentos do autor mineiro. Com sua ótica peculiar, tentava entender sua importância e contribuição. 

    Rosa aparece com frequência nas crônicas reunidas em O Óbvio Ululante. Em um episódio incrivelmente sarcástico e revelador, Nelson conta ter visto o escritor andando na rua. “De cara empinada, as duas mãos cruzadas nas costas, ele é o Guimarães Rosa em fremente lua-de-mel com Guimarães Rosa. A gente tem vontade de pedir-lhe: 'Seja Guimarães Rosa com mais naturalidade'”.

    Mas foi no romance Asfalto Selvagem, agora relançado pela Harper Collins, que o autor de Vestido de Noiva pôde dar vazão aos seus comentários mais ácidos (ou lúcidos) sobre Rosa. Nesse folhetim, publicado entre 1959 e 1960 no jornal carioca Última Hora (no auge, portanto da consagração de Rosa), uma admiração contida caminha ao lado de muita desconfiança e implicância com o autor de Grande Sertão: Veredas.

    Como observaria Carlos Heitor Cony em crônica de 2001, em toda sua obra, notadamente nas crônicas, mas especialmente em Asfalto Selvagem, Nelson atribui comentários, ideias e pensamentos seus a interlocutores claramente identificados.

    Ali, apesar de o romance exaltar as virtudes estilísticas de uma obra monumental, Rosa é encarado com sentimentos diversos que vão da plácida reserva a uma impaciência furiosa, com boas doses de ironia e constante inquietação. Os comentários são ácidos. Na primeira evocação, um personagem retruca apressadamente um conselho: "- O Guimarães Rosa quer que todo mundo faça pirâmide e não biscoito. Mas o que é a obra do Guimarães Rosa senão uma pirâmide de confeitaria?"

    Mais adiante, num diálogo precisamente localizado em um automóvel em movimento, um dos personagens acena para a "relação entre o sexo e a epopeia industrial". O outro concorda, exultante: "- Batata! E o que faz o romance brasileiro que não vê isso? A nossa ficção é cega para o cio nacional! Por exemplo: não há, na obra de Guimarães Rosa, uma só curra!" 

    Como disse o poeta José Lino Grünewald, "era lapidar a intuição conceitual de Nelson". Mais exemplos de Asfalto Selvagem: 

    "- O Guimarães Rosa é pura excitação verbal. O sujeito é ouvinte do seu texto e não leitor. Mas, a partir da trigésima página, sentimos um irremediável tédio auditivo. Grande Sertão: Veredas torna-se uma audição para surdos”. 

    "- Guimarães Rosa pode ser um gênio. Mas é a maior monotonia verbal de todos os tempos. Dirá você que é um problema de acomodação auditiva. Mas, das duas, uma: ou o sujeito aceita o Guimarães Rosa e repudia os outros; ou prefere os outros e chuta o Guimarães Rosa”.

    Anos depois da publicação do folhetim, quando Rosa morreu, em 1967, Nelson Rodrigues publicava suas "confissões" em O Globo. Insuflado pelo golpe e pela ditadura, com as crônicas ele intensificava a face mais assumidamente reacionária de sua produção.

    Uma seleção dessas “primeiras confissões” foi reunida em O Óbvio Ululante, cuja primeira edição saiu no fatídico ano de 1968. No livro, percebe-se que as dúvidas de Nelson em relação a Rosa não acabaram. Por outro lado, é notável como sua admiração pelo autor cresceu.

    As primeiras crônicas saíram à época da morte de Rosa. Nelas, Nelson procura investigar aspectos da vida e da obra do mineiro. Interessa o grande escritor, o estilista, a perenidade de seus textos e, inevitavelmente, o que ela tinha de acaciano.

    Como é de se esperar, ele não faz nenhuma análise profunda do texto rosiano, mas a intuição inigualável resulta em comentários superficiais apenas na aparência, que na realidade se revelam precisos e ajudam a entender a admiração restritiva que tinha por Rosa. 

    Num dos textos, ele narra um encontro com um dos muitos amigos que tinha em comum, o psicanalista Hélio Pelegrino. Ali, eles juntam dúvidas e preparam um encontro. Dias depois, surpreso, o dramaturgo comenta a morte súbita do autor, acometido por um enfarte fulminante: 

    “A morte de Guimarães Rosa tocou meu íntimo e inconfesso pântano”, escreve. “Vivo, ele nos agredia e humilhava com a sua monumental presença literária. E súbito, num domingo, morria Guimarães Rosa. A notícia deu-me um alívio, uma brusca e vil euforia. É fácil admirar, sem ressentimento, um gênio morto. Já tínhamos um Machado de Assis. Guimarães Rosa seria outro Machado de Assis. Claro que os demais continuavam vivíssimos, atropelando. Mas esses não fundaram uma língua, nem escreveram ‘A terceira margem do rio’”. 

    Com sua honestidade habitual, a admiração em Nelson Rodrigues não é desvinculada da vaidade e da inveja. A morte precoce foi ainda pretexto para que o cronista tratasse de um de seus temas favoritos.

    “Não acredito no medo da morte que, a meu ver, ninguém tem. Há inversamente, em todos nós, a nostalgia da morte. Também não acredito no medo de Guimarães Rosa. Nem a morte foi uma visita. Há muito tempo os dois se entendiam. E o escritor chegou a datá-la. Pode-se dizer que havia uma convivência e que ele se tornara íntimo da própria morte”.

    Carlos Heitor Cony, também ele personagem das confissões, aparece numa crônica afirmando categoricamente que Guimarães Rosa era “o novo Coelho Neto”. Diante da comparação, Nelson Rodrigues dissimula um espanto incontido. “E o resto? Que diabo! A linguagem!”. E Cony, no que Nelson chamou de “revisão crítica de calçada”, retruca: - “A linguagem quem faz é o povo”. Quando Reynaldo Jardim se junta aos dois e ataca Rosa como “falsário da linguagem”, Nelson conclui: “súbito, fui varado por uma dessas certezas inapeláveis, fatais: - Guimarães Rosa era o único gênio de nossa literatura”.

'Pilatos', de Carlos Heitor Cony, simboliza o Brasil de Delfim Netto

Pilatos , romance de Carlos Heitor Cony publicado em 1974, pode ser lido como um retrato do Brasil de Delfim Netto, um dos artífices da dita...