03 dezembro 2011

Outono

No final do outono, as tardes do bairro de Wimbledon, no sudoeste de Londres, guardam uma inconfundível paisagem do que se imagina como sendo a Inglaterra. As folhas caídas que não são recolhidas até se pregarem e se misturarem para sempre no asfalto, as copas das árvores completamente sem folhas nas quais brincam esquilos que debandam com a proximidade de assustadores pássaros pretos, os velhos que caminham com coletes e boinas e, às vezes como um personagem de Dickens, com volumosas costeletas e irretocáveis smokings, tudo isso me faz crer que estou vivendo de fato em terras inglesas.

As coisas neste país são tão típicas e características que é impossível não reconhecê-lo em cada casa de tijolinho, no passar do ônibus de dois andares ou do táxi preto que, nos últimos anos, vem ganhando novas cores que vão desde as cores da bandeira da união até um inesperado magenta. Numa pequenas epifania, Caio Fernando Abreu se referiu à Inglaterra como “a velha senhora que virou punk”.  De encontro a isso, um professor outro dia me dizia que é do espírito inglês ser ao mesmo tempo aristocrata e anarquista. As pequenas mudanças não têm um componente de declarada transformação, mas é notável como ao longo da história eles se transformaram enquanto conquistavam e construíam coisas que os tornaram tão peculiares e, tão ao seu gosto, excêntricos. Às vezes mais, às vezes menos do que imaginamos.

Nesta semana no tram, como os britânicos chamam o bonde, uma mulher começou a falar mal de negros e polacos que, segundo ela, deveriam voltar para os seus países. Houve reação e bate-boca, mas, talvez protegida pelo filho que trazia no colo, talvez porque agressões e brigas são coisa rara por aqui, nada de grave ocorreu. Creio que a mulher foi presa e será encaminhada a uma instituição psiquiátrica. A manifestação foi muito comentada sobretudo nos jornais impressos e houve é claro quem observasse que o racismo exacerbado foi um pensamento crescente que se tornou corpóreo nas palavras da jovem mãe.

Vivendo há exatos seis meses por aqui, não tenho como dizer se isso é correto e torço para que não seja. Claro que a crise econômica que ameaça invadir a Inglaterra e as massas de trabalhadores que migram para cá são temas difíceis para os ingleses, um povo que não gosta de falar abertamente de política e religião. Eles que, a ignorância dessa mulher não a deixa ver, foram formados por tantos povos invasores ao longo da história, agora se vêem obrigados a tomar medidas mais duras contra o que vêm do continente, muitas vezes graças a facilidades permitidas pela discretamente contestada União Européia. O caso do tram, como tudo o que envolve xenofobia e preconceito, é infundado e beira o bestial, mas a atitude da mãe, reflexo dos tempos, não deixa de encontrar eco em diversos setores da sociedade, sobretudo naqueles representados pelo partido conservador.

Seis meses e essa paisagem de Wimbledon que tanto mudou desde a minha chegada começa a se tornar mais monótona, mesmo permanecendo incrivelmente bela. O corpo ainda não se acostumou ao frio que tem feito e que só vai aumentar até o auge do inverno no começo do ano. O tempo, agora, é de trabalho e pouco lazer. Lembro dos amigos me dizendo que eu não ia voltar, mas invariavelmente sinto que o meu tempo por aqui está chegando ao fim. Quando isso acontecer, a Inglaterra terá sido uma tarde de outono, bonita e melancólica.

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