20 dezembro 2011

Amor de cão

Quando éramos crianças, minha irmã e eu escolhemos um filhote numa ninhada da casa do Davi, caseiro da chácara de um grande amigo do meu pai. Não me lembro ao certo, mas creio que havia quatro cachorrinhos e pegamos uma fêmea logo batizada de Chispita por causa de uma novela mexicana da época.

A Pita, como a chamávamos, cresceu junto com a gente, mas ainda novinha pegou uma parvovirose e quase morreu. Depois do tratamento, a veterinária sugeriu que ela precisava de terra e espaço. Como tinha tudo isso na casa dos meus avós, em Itu, ela foi deixada para ser criada pelos Ditos (a vó Dita e o vô Dito).

Em pouco tempo Chispita se tornou a cachorra do meu avô. Onde ele estava ela também estava. Eram inseparáveis. Quando chegávamos aos sábados pela manhã éramos recebidos com uma série de latidos que parecia interminável tamanha era a alegria dela. Na gaveta do armário da varanda, sempre tinha uma paçoquinha cuidadosamente enrolada num guardanapo de papel, desses de boteco. Chispita era louca por paçoca. Talvez por ter crescido com duas crianças, gostava de doces em geral e de sorvetes em especial. Era irmos a uma sorveteria lá de Itu para ela dar espetáculo por sua paixão por sorvete. Também gostava muito de andar de carro.

Nunca me esqueço do vô Dito sentado numa ponta do sofá e a Chispita dormindo na outra. Então ele tirava um palito de fósforo do bolso da camisa e cuidadosamente começava a espetá-lo entre os dedos de uma das patas. Ainda dormindo, a Pita começava a coicear e o meu avô quase não conseguia segurar a gargalhada iminente. Quando ele estava de mau humor, o que não era muito freqüente, ele via a cachorra na mesma posição e reclamava:

- Essa cachorra não faz nada o dia inteiro. Só dorme.

- E o que você quer que ela faça?, protestava a minha avó.

E assim a vida seguia naquele pacato bairro de Itu. Um dia, porém, meu avô morreu e a Chispita tentou seguir a ambulância que levava o seu corpo. Não me lembro se foi ainda nesse dia, mas logo depois da morte a Pita desapareceu. Ela já tinha fugido algumas vezes antes, mas daquela vez ficou fora por mais de uma semana. Pensamos que a tínhamos perdido para sempre, mas um vizinho a encontrou muito longe de casa e a trouxe de volta. Estava prenhe.

Meu pai tinha começado a construir o jazigo sobre a vala onde meu avô foi enterrado e Chispita costumava acompanhá-lo até o cemitério. Ao ver a cachorra, um dos coveiros a reconheceu e disse que ela andara por ali havia alguns dias. Logo entendemos que durante o seu retiro ela estava onde sempre gostou de estar, ao lado do grande amigo.

Anos mais tarde, quando a Pita também morreu, minha mãe a enterrou na mesma chácara onde ela tinha nascido catorze anos antes. Eu não consigo imaginar gesto mais amoroso. Uma bela retribuição a essa cachorrinha que tanto nos deu.

Por essas e outras, nunca entendi direito as pessoas que não gostam de cachorro. Talvez porque eu goste tanto, porque eu sinta grande alegria ao lado de qualquer um deles eu não consiga entender bem como alguém pode não gostar. Algumas pessoas têm traumas, outras simplesmente não gostam das “marcas” que os bichos deixam pela casa, não sei. O fato é que eu concordo com o Mário Bortolotto quando ele diz que “cachorros são sagrados”.

Então, vejo notícias como a do Lobo, o cão que foi arrastado numa caminhonete e, depois de dias de agonia, não resistiu, ou essa do cãozinho Titã, enterrado vivo, e não acredito na imbecilidade e na ferocidade humana. Infelizmente esse tipo de mau trato é comum. E como pode ser? Eu não sei, mas ao mesmo tempo há a comoção e, no caso do Titã, a intuição maravilhosa do homem que suspeitou haver algo estranho naquele monte de terra recém revolvida.

Agora o Titã está se recuperando e eu rezo para que tenha uma longa e boa vida, como a Pita teve. E o cãozinho, se fosse dado de volta a esse dono a quem nos parece impossível perdoar, ele sim seria capaz, como o ser que é, do perdão.

2 comentários:

  1. Que lindo Vi! Adoro meus peludinhos. Todos os dias eles me ensinam o que é o amor verdadeiro.

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  2. Este comentário foi removido pelo autor.

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