28 maio 2013

"Cuitelinho" e o elogio do anonimato


Na entrevista que deu ao Roda Viva há duas semanas, o escritor peruano Mario Vargas Llosa contou que, durante as pesquisas para o seu livro "A Guerra do Fim do Mundo", que trata do conflito de Canudos, viu no interior da Bahia violeiros entoando canções da Idade Media portuguesa preservadas durante séculos no território isolado do sertão nordestino.

“Cuitelinho”, composição tradicional do sudoeste do Brasil cujos versos anônimos receberam a contribuição de Paulo Vanzolini, pode não ser tão antiga quanto as canções que maravilharam Llosa, mas é um exemplo de permanência cultural que impressiona, para além da beleza, pelo que sua história tem de originalidade e de acaso.

A começar pelo título, uma revelação em si. “Cuitelo”, segundo o dicionário eletrônico Aulete, é “um dos nomes para beija-flor, em São Paulo”. Ou, de acordo com o Pequeno Dicionário Brasileiro da Língua Portuguesa (S. Paulo, Companhia Editora Nacional, 1972), um “brasileirismo de São Paulo”, “denominação genérica dos beija-flores, entre os caipiras”. “Cuitelinho” seria, assim, um pequeno beija-flor ou um “beija-florzinho”. 

Além do pássaro, a composição original, ou pelo menos a composição que chegou até nós, também faz referência a uma revolução no Paraguai. Como não sabemos com precisão a data em que a letra foi escrita, não podemos saber de que revolução ela trata, se a da independência do país (em 1811), se a da guerra que também envolveu Brasil, Argentina e Uruguai (1864-1870) ou ainda a Guerra Civil paraguaia de 1947.

Em diversas ocasiões, como nos programas Vox Populi e Ensaio, da TV Cultura, Vanzolini contava que o amigo Antônio Carlos Xandó, um prosaico fiscal de rendas “tarado por música caipira”, ouvira a melodia e os versos cantados por um barqueiro chamado “Nhô Augustão” em alguma parte do rio Paraná, divisa natural entre São Paulo e o atual estado de Mato Grosso do Sul que, na época, integrava o Mato Grosso. Havia apenas duas estrofes, que bem podiam ser as originais ou as sobreviventes de uma composição mais longa:

Cheguei na 
Beira do porto onde as ondas se espaia
As garça
Dá meia vorta e senta na beira da praia
E o cuitelinho não gosta
Que o botão de rosa caia, ai, ai, ai

Quando eu vim
Da minha terra despedi da parentaia
Eu entrei 
No Mato Grosso e dei em terras paraguaia
Lá tinha a revolução
Enfrentei forte bataia, ai, ai, ai

O desaparecimento e a recriação, geralmente anônima, de trechos de poesias ou canções é uma característica da tradição oral. No caso de “Cuitelinho”, sentindo a necessidade de mais letra para ser cantada, Vanzolini deu a sua contribuição. Como bem observou Marcelo Leite na Folha de S. Paulo por ocasião da morte do compositor, “estão ali talvez os versos mais formosos de uma das mais bonitas melodias do cancioneiro nacional”:

A tua
Saudade corta como aço de navaia
O cora-
Ção fica aflito, bate uma, a outra faia
Os óio se enche d'água
Que até a vista se atrapaia, ai, ai, ai

No Ensaio, reprisado pela TV Cultura em homenagem a Vanzolini, o autor falou, sem falsa modéstia, da dificuldade em fazer a rima em “aia” (a pronúncia caipira das palavras em "alha", de "navalha" e "atrapalha", por exemplo). Questionado sobre os versos de sua preferência, disse gostar mais da segunda estrofe, a das “terras paraguaias”. 

O problema, porém, aparece em “Um homem de moral”, documentário sobre a música de Vanzolini dirigido por Ricardo Dias. Nele, sem se importar com os conceitos de verso e estrofe, o cancionista diz ser o autor dos dois últimos versos de “Cuitelinho”: "o que não é meu é só o primeiro verso, os outros dois são meus". Assim, podemos supor que os versos sobre a o Mato Grosso e o Paraguai também teriam sido compostos por ele.

Em outro programa, Brasilianas.org, da TV Brasil, Vanzolini diz que deu uma “arrumada” no “Cuitelinho”: “Nhô Augustão tinha esquecido de uns versos, eu tinha esquecido de outros, eu dei uma arrumadinha e... tá aí, né?”

Ainda no Ensaio, o compositor revelou ter tomado conhecimento de uma nova estrofe da canção, anos depois dela ter se tornado célebre com suas dezenas de regravações:

Vou pegar
O teu retrato e vou botar num medaia
Com o ves-
Tidinho branco e o laço de cambraia
Vou pendurá no meu peito
Que é onde coração trabaia, ai, ai, ai

Diante disso e da contradição sobre a segunda estrofe cabe a pergunta: teria ele ouvido ou escrito esse último trecho adicional? Trabalhador incansável e perfeccionista que se demorava anos sobre uma letra ou rima, é difícil e talvez inútil saber o tamanho da inegável contribuição ou “arrumação” de Vanzolini em “Cuitelinho”. Teria ele feito uma nova estrofe, quem sabe insatisfeito com o comprimento da letra?

Não podemos saber. O fato é que, como aquelas canções do sertão de Vargas Llosa e ao contrário de tantas outras que se perderam, “Cuitelinho” sobreviveu. E Vanzolini ajudou a eternizar a bela melodia e os versos do anônimo letrista que, também não saberemos, podem ter sido a mesma pessoa.

(Foto: Stock.xchng)

7 comentários:

  1. Cuitelinho e Vanzolini-perfeito casamento,celebrado por Deus...

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  2. Se trata mesmo de uma memória, de uma identidade que, por sua vez, corrobora nossa identidade cultural!

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  3. Gostei muito de trabalhar essa canção com meus alunos da EJA. Principalmente a variedade linguística.

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  4. A letra da música tem autor identificado

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