Nasci numa Sexta-feira Santa, há 35 anos. Mas não creio que seja por isso que desenvolvi uma relação especial com a data, sempre vivenciada com muita contrição e respeito lá em casa.
Por ser um feriado, era comum que passássemos o dia em Itu, onde viviam meus avós maternos. E em Itu, com suas dezenas de igrejas e inúmeros rituais ao longo do ano, as palavras tradição e catolicismo têm uma força muito grande. Talvez por isso sempre me pareceu que parte da cidade não pertencia àquele tempo, era como se o lugar estivesse deslocado. E até hoje eu associo Itu aos filmes épicos que marcaram a minha infância, como “Os Dez Mandamentos” e “Ben-Hur”, freqüentes na programação da tevê durante aqueles dias.
Na Sexta-feira Santa, meu avô jejuava o dia todo, diferentemente de nós, que simplesmente não comíamos carne. Lembro dele meio retirado, estranhamente calado, a barba por fazer, hábito que não se permitia em nenhum outro dia do ano.
Minha avó contava que, quando pequena, a paixão era vivida na quinta-feira, quando as pessoas saiam de casa pela manhã sem sequer lavar o rosto e iam para o rio, onde se purificavam. Essa troca das datas fazia sentido para mim já que, reza a Bíblia, Jesus teria ressuscitado ao terceiro dia.
Em dado momento, minha mãe chamava a minha atenção para olhar para o céu. No meio da tarde, ela dizia, o tempo começa a mudar, o céu fica carregado e as nuvens negras aparecem para para marcar o momento em que Jesus entregou seu espírito.
Pode parecer superstição ou misticismo, mas não me recordo de Sextas-feiras Santas em que isso não ocorreu. O dia, assim como o de hoje, era estranho e arrastado. Meio sem entender, mas sempre respeitosos, minha irmã e eu esperávamos até o domingo, quando, em frente à Praça da Matriz, dava-se a “explosão do Judas”. Tradicionalmente, a malhação ocorre no Sábado de Aleluia, mas em Itu, em algum momento, a desforra tornou-se um espetáculo pirotécnico encenado no domingo de Páscoa.
No alto de um poste, vestido de vermelho, havia um diabo com um sorriso maligno e olhar amedrontador. Embaixo, um Judas arrependido. Não me lembro se havia uma contagem regressiva, mas, em meio a fogos, o diabo descia o mastro e montava sobre os ombros de Judas. Então ambos os bonecos se soltavam e ficavam balançando no ar por alguns segundos até que, de repente, explodiam, espalhando-se pelos ares. Posso estar enganado, mas creio que da fumaça surgia um Cristo ressuscitado e glorioso.
A multidão em torno da praça vibrava com o traidor vingado pelo artista-fogueteiro que inventou o espetáculo. Tomávamos o caminho de volta passando por ruelas com calçadas de varvito e casarões coloniais. E, não raro, trazíamos um pedaço de Judas ou do diabo como troféu.
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