Em sua primeira aula para aquela turma da quinta série, o professor Vannucchi
começou nos pedindo um resumo. Poderíamos escolher o livro. Optei por uma
edição da Coleção Vaga-lume, famosa na época. A tarefa deveria ser feita em
quatro páginas, o que assustou a todos. Parecia pouco. Um livro, ele nos disse,
podia ser resumido em poucos parágrafos, em uma única frase ou simplesmente em uma palavra, se quiséssemos.
Eu
não entendia como. Em casa minha mãe discordava. Ela, que também dava aulas
naquela escola, admiradora da língua portuguesa que era, torceu o nariz para a
ideia. Não sei se fui bem ou mal no resumo, mas eu o entreguei conforme o
pedido. Seu Vannucchi nos fazia ler em voz alta. Sentados, podíamos
ler as lições de Domingos Paschoal Cegalla em conjunto. Em pé,
diante da sala, a escolha ficava ao nosso critério, mas não podíamos errar. Um
gaguejo ou um titubeio e a leitura era interrompida. Voltávamos constrangidos
para as nossas carteiras.
A
escola era uma das mais tradicionais da cidade, famosa pela qualidade de seu
ensino público. Tínhamos bons professores, que educaram gerações de
sorocabanos. José Duarte Vannucchi era um dos mais respeitados, tinha um ar
austero, mas era um homem pacato e sereno. Vestia o mesmo modelo de roupas:
calças de linho de cor escura, camisa de mangas curtas, quase sempre branca, e sapatos.
Usava óculos de aros grossos que tinham saído de moda, mas voltariam nos dias
de hoje. E sempre carregava uma pasta, na certa com suas aulas e os trabalhos
dos alunos.
Ele
era um senhor de meia idade na época. Com meus onze anos eu o via como um
velho. E o respeitava. Meu pai dizia que ele pertencia a uma família importante
da cidade. Seu irmão, Aldo, era diretor da Faculdade de Ciências e Letras, que
depois se transformaria na Universidade de Sorocaba, e um de seus parentes
próximos, talvez um sobrinho, se tornou um mártir da luta contra a ditadura depois
de morrer torturado nos porões do DOI-CODI. Hoje, o Diretório Central dos
Estudantes da USP, onde estudou e militou, leva o nome de Alexandre Vannucchi
Leme.
Não sabíamos de nada, nem poderíamos. Éramos crianças entrando na
adolescência. Seu Vannucchi sabia muito bem, por isso nos incentivava a criar
jogos de palavras-cruzadas. Sempre a palavra. Um dos alunos inventava o jogo e
toda a sala concorria durante alguns minutos até alguém solucionar o problema. Quem
completasse primeiro o tabuleiro ganhava um ponto positivo na nota. Eu nunca
ganhei pontos com as cruzadinhas, me saía melhor nas leituras diante
da turma, mas nunca me esqueço do dia em que criei o meu jogo e o submeti à classe.
Sem artificialismos, sem deslumbramento, seu Vannucchi nos fazia gostar da
palavra.
Um
dia nos pediu atenção:
- Anotem o
nome de um dos maiores poetas da língua portuguesa.
Então escreveu
no quadro: “Olavo Brás Martins dos Guimarães Bilac”. Seu Vannucchi leu um ou
outro poema do parnasiano que se perdeu na minha memória, mas nunca me esqueço
daquele nome e, mais do que isso, daquele gesto que expôs a veneração de um homem
que eu mesmo admirava.
Língua
Portuguesa nem era a minha matéria preferida. Eu gostava mais de História; o português vinha na seqüência, mas eu tinha muito carinho pelo seu
Vannucchi. Era o tipo de professor que exercia controle sobre a sala com a
autoridade que possuía, inibindo os alunos dispostos à algazarra.
Minha
disposição era outra. Algumas vezes passei diante da casa em que o professor morava na rua da Penha. Numa das aulas, seu Vannucchi tinha falado de sua
biblioteca. Impressionou a todos com a quantidade de livros que possuía: cerca de cinco mil. Não queria se exibir, apenas mostrar a importância da
leitura. Atrás da mureta, eu tentava divisar aquelas estantes através da
janela.
Gostávamos de
ouvi-lo falar sobre leituras e sobre a língua. Ecoava as palavras do meu pai
quando falava da importância dos dicionários. Chamava a nossa atenção para
coisas do nosso cotidiano. A palavra “misto”, de misto quente ou frio, deveria
ser grafada com “s” e não com “x”, como era comum nas lanchonetes que
começávamos a frequentar na cidade. O próprio nome do colégio também estava
errado. A “Escola Estadual de Primeiro e Segundo Grau Dr. Júlio Prestes de
Albuquerque”, nome que nos dava tanto trabalho nos cabeçalhos de provas, deveria ser “de primeiro e segundo graus”, de acordo com a concordância.
Durante dois
dos sete anos em que estudei no “Estadão” ele me ensinou língua portuguesa.
Depois de formado e vivendo longe da cidade meu pai cuida de me aproximar de
Sorocaba e de minhas origens. Volto para a casa em que fui criado e noto as
mudanças na escrivaninha que meus pais um dia me deram. Passei muito tempo sobre
o tampo, desenhando, lendo e escrevendo. Agora os patamares são ocupados pelas coisas do
meu pai: recortes de jornal, contas, papéis e a velha máquina de escrever
Olivetti, modelo Lettera 22, onde até hoje ele me escreve recados e instruções
sobre como realizar determinadas tarefas. Há bem pouco tempo, entre os
recortes, ainda havia artigos sobre língua portuguesa que o seu Vannucchi publicava no
jornal “Cruzeiro do Sul”.
O carinho do
meu pai me reaproximava do velho professor. Quanto mais longe, mais eu volto
para a Sorocaba daquele tempo e sei que nada vai voltar. Hoje, durante o almoço, a
conversa com colegas nos levou a falar sobre “polidactilia”, anomalia que causa
a formação de outros dedos além dos cinco em membros dos seres-humanos. Então a
memória me lançou para a quinta série e me lembrou do Atanásio, que nasceu com
seis dedos em cada mão. Ele era o personagem de um poema de Drummond que
figurava na nossa gramática. A ilustração, hoje eu reconheço pelo traço, era do
Ziraldo. Comentei sobre o Atanásio na mesa.
- Como você se
lembra disso? – alguém perguntou.
- Eu me lembro
de tudo – respondi, para desviar a conversa.
Daria muito
trabalho dizer como eu me lembro do seu Vannucchi, dos meus pais e das coisas
de Sorocaba.
(Essa crônica foi escrita há alguns anos,
quando o seu Vannucchi ainda era vivo. Vai aqui, com ligeiras alterações, em homenagem aos professores, especialmente aos meus pais.)
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