Na avenida Dinamarca, no bairro de Wimbledon, em Londres, existe um asilo vizinho a uma moradia para estudantes estrangeiros. Apesar da necessidade de ambos os lados, ou seja, estudantes que precisam aprender e praticar inglês e idosos que necessitam de companhia, durante os sete meses em que vivi no endereço vi pouca interação entre as gerações.
Eu mesmo fui poucas vezes ao asilo. Hoje, entretanto, vejo como ter enfrentado a dificuldade do idioma para bater na porta daquele endereço discreto e distante como ademais me parecem os todos os ingleses foi uma das melhores coisas que fiz na Inglaterra. O que eu queria naquela tarde de um dia extremamente quente de verão era praticar meu parco inglês, mas fui agraciado com uma grata surpresa.
Quando me ofereci para ser um voluntário e manter conversas com os idosos, a mulher da recepção me aplicou uma minientrevista para somente então me encaminhar, o que levou algumas semanas, ao interlocutor correto. Como eu tinha dito que era jornalista e gostava de literatura, ela me indicou esse senhor, Terence Matthews.
Tratava-se de um septuagenário que dedicou grande parte de sua vida ao trabalho atrás do balcão de um conhecido banco europeu. Viúvo e aposentado, decidiu isolar-se naquela região do sul da capital britânica. Travamos pouco contato, menos do que talvez nós dois desejássemos. Digo isso porque em cada uma das visitas que fiz a Terry fui sempre muito bem recebido e pude sentir o quanto ele desejava que eu o freqüentasse mais. Acontece que minha reserva e meu propósito de não ser inconveniente impediram-me de, talvez, firmar a única amizade puramente inglesa que eu podia ter feito na Inglaterra.
Terry era o tipo calado, quase fleumático, mas educado o suficiente para conversarmos sobre o assunto que a secretária havia me recomendado: livros e literatura. Em duas ocasiões, com uma indiscrição que em retrospecto me causa certa vergonha, perguntei-lhe os motivos daquele retiro e quis saber sobre sua família, mas em ambas Terry recusou-se a falar desses assuntos. Na última, com um humor amargo, me disse que apenas trabalhara num banco durante a maior parte de sua vida e que seus filhos sabiam muito bem disso. Não mais insisti.
Ele conhecia o Brasil, ou melhor, conhecia algumas cidades nordestinas. Como meus pais, tinha uma boa memória de Natal, para onde viajou de férias nas décadas de 1970 e 80. A informação foi ótima para mim. Mesmo sem conhecer o Nordeste, agora eu tinha um elemento para quebrar o gelo e prosseguir com aquelas conversas que começaram de modo estranho e titubeante.
Além da vantagem da idade, Terry logo demonstrou outra sobre mim, o conhecimento de um tipo de literatura que nunca foi a minha preferida: a policial. “Venho lendo essas histórias há tanto tempo que eu já nem me lembro quando começou”, disse, com aquele uso exemplar que os ingleses fazem do present continuous.
“Também escrevi um livro”, acrescentou para a minha surpresa.
“É mesmo?”
“Publiquei-o em 1959, mas não prossegui depois”.
“Por que não?”
“Deixei-me levar pelos críticos...” Parou por um momento para logo retomar. “Há duas coisas interligadas que um verdadeiro escritor jamais deve levar em consideração: a crítica e o medo. Venci em parte a segunda, mas me deixei inibir pela primeira. Como vê, não sou um artista verdadeiro”, completou, olhando ao redor, não exatamente para o quarto.
“O senhor ainda tem o livro?”
"Gostaria de dizer que sim, mas o fato é que me livrei dos meus exemplares encalhados. Guardo o manuscrito, é claro. Foi escrito à mão. Mas as edições acho impossível encontrar."
“Ainda assim vou procurá-lo”, eu disse. “Como se chama?”
“’The Mystery of Bentinck Street’, mas desista. Não vale a pena”.
Quase acreditei nele.
Um de seus heróis literários era tão óbvio quanto inevitável, sir Arthur Conan Doyle.
“Eu devia ter me livrado dele antes de começar a escrever”, revelou. “É o que devemos fazer antes de nos submetermos à folha em branco”, disparou outro conselho.
Na estante com poucos livros daquele quarto asséptico havia um busto do personagem mais famoso de Doyle e certamente de toda a literatura policial: o detetive Sherlock Holmes. Provavelmente foi comprado no Sherlock Holmes Museum, na Baker Street, onde depois eu também compraria uma estatueta do personagem.
Perguntei se ele tinha visto o filme mais recente de Holmes, “Um jogo de Sombras”, e ele me disse que não, que já não ia ao cinema. Entretanto louvou o fato de não ser uma adaptação.
“Billy Wilder fez isso. O personagem Holmes vai além das histórias criadas por Doyle, é como o Quixote, pode-se fazer mais com eles sem desmerecer ou querer equiparar-se aos seus criadores. O Quixote, aliás, foi continuado tão logo o livro de Cervantes revelou-se bem sucedido, não foi? Wilder também fez isso, sua história de Holmes não era de Doyle, mas o personagem, sim”.
No mesmo dia em que me falou sobre seu livro, procurei referências a Terry na Internet. Nada encontrei. Também não garimpei as centenas de sebos e livrarias da cidade, muitas delas especializadas em literatura policial. Seria uma tarefa muito árdua para a minha permanência.
Entretanto, debaixo da Putney Bridge, perto de onde eu morava, havia um livreiro especializado nesse gênero. Quando falei do autor ao livreiro quase tão velho quanto Terry, ele me disse nunca ter ouvido falar de seu nome, mas recomendou, com uma esperança verdadeira mas que eu sabia inútil, que eu procurasse por ele na internet.
Ahhh Vina!!!! Toda vez que te leio só consigo pensar que, como disse Arnaldo: "O SEU OLHAR MELHORA O MEU"... OBRIGADA!!! Andy
ResponderExcluirAi que lindo! Eu não sabia dessa sua experiência!!! Muito bacana! Voltei no tempo agora...Seus textos são ótimos!!! Congratulations my friend!!!
ResponderExcluirbjos
Ju Brito