06 abril 2011

Feliz aniversário, Sr. McCartney

Ele acorda no meio da manhã. Ao seu lado a cama está vazia. Espia a fresta da janela. De pijama abre as cortinas. Faz sol. É o final da primavera e uma leve neblina se dissipa nos gramados do sul da Inglaterra. Mary e Stella, as filhas mais velhas, decidiram organizar uma pequena recepção para o pai em Peasmarsh. Virão apenas familiares: os filhos, os netos e seu único irmão, Michael. Também Heather Mills, de quem acabou de se divorciar. O motivo de sua vinda é Beatrice, a filha do casal, de dois anos e oito meses. O aniversário coincidiu com o dia dos pais.

Tenta não pensar no passado. Conclui que aos 64 anos a perspectiva de futuro é menor do que a memória. Pensa em Linda e em George, que há pouco se foram. Logo surgem as lembranças de John, do pai e da mãe, cujas mortes são remotas.

Hoje, porém, ele não quer nada remoto. Anseia por rever a risada de Béa. Vai reunir a família, talvez tocar para todos eles. Não espera nada além disso. Ainda no quarto, interfona para o mordomo:

- Bom dia!
- Feliz aniversário, Sr. McCartney!
- Obrigado, Joseph. Algo especial?
- Só as remessas de sempre.

Desde o começo da beatlemania o aniversário é o dia em que suas propriedades ficam abarrotadas de cartas e presentes. Os funcionários são orientados a filtrar todos os telefonemas. Se quisesse, nunca mais precisaria dizer alô.

- Talvez hoje aconteça algo diferente – diz.

Diferente. Diferente é a realidade dos 64 anos. Diferente de todos os outros anos. Diferente sobretudo da canção que escreveu há mais de quatro décadas. Sempre foi criticado por produzir letras ingênuas. Daquela vez não pensou em si mesmo aos 64, mas em um tipo qualquer, um sexagenário da classe trabalhadora inglesa. A letra surgiu naturalmente a partir de uma melodia que foi ganhando seu cérebro e ouvidos. Uma melodia antiga. Se cumprisse o destino do subúrbio onde cresceu em Allerton, Liverpool, talvez hoje estivesse num pub cantando You'll never walk alone. Ele ri da cena. Sempre teve um carinho especial pelo Everton, mesmo não ligando muito para futebol. O telefone toca. Alguém repassa uma ligação:

- Ei, cara! Enfim chegou!

Imediatamente reconhece a voz canina:

- Bom dia, Ring! – saúda, rindo.
- Não vem para Londres?
- Não. Devo ficar por aqui. A família toda reunida, sabe como é.
- Ah, sim. Nessa idade é importante aproveitar todos os momentos.

Os dois riem desbragadamente. Ringo retoma:

- E como estão as coisas?

Sabe a que o amigo se refere, mas não quer entrar num assunto ainda não resolvido.

- Vão se ajeitar.
- Tudo bem, então. Se precisar você já sabe. Paz, cara. Eu amo você. Desejo toda a felicidade, vai ficar muito tempo com a gente.
- Obrigado, Ring. Muito obrigado mesmo.

Ringo sempre ligou. Dos amigos da juventude é o único que ligaria. George quase nunca ligava nos aniversários, John também não. Tem pensado muito em John. Encontraram-se pela última vez em 1976 ou 77? Não lembra. Conversaram por telefone depois do lançamento do último disco do ex-parceiro. Então acabou. Aqueles tiros estúpidos e pronto, John era uma lembrança. As lembranças realmente importantes são quase tão vivas quanto os acontecimentos presentes. O passado sempre presente.

Decide que vai evitar o contato com Heather Mills dedicando todas as atenções para Béa e os netos - nenhuma Vera, nenhum Chuck, nenhum Dave. Desce para o café da manhã antes que as lembranças o paralisem. É saudado pelas filhas mais velhas e pelos netos. Pergunta por James. Logo o filho aparece. Se abraçam, ele se emociona. O filho sorri. É o sorriso de Linda.

Heather traz Beatrice. A menina se dá com Heather, a filha de Linda que ele adotou quando se casaram em 1969. Dois James e duas Heathers. Uma só Linda. Um só John. De repente lhe ocorre que Linda existe mais no sorriso do filho do que em suas lembranças. James nota uma melancolia que o pai mal consegue disfarçar. Ele está muito apegado a Beatrice. A menina é encantadora e o pai mantém a idéia fixa da criação. Depois do almoço tira um leve cochilo. Acorda para o chá. À noite todos se juntam no estúdio tocando velhas canções, algumas muito tristes, que ele melhora.

Bebem até tarde, até restarem somente ele e o filho no estúdio. A namorada de James aparece. A conversa flui até que os silêncios ganham mais corpo do que as palavras. A visão de James e da namorada reforça o pensamento em Linda e em Heather, no pouco tempo em que ficaram juntos. Reforça, sobretudo, a sua solidão. Ele, que cantou No more lonely nights menos como um artifício do que como um desejo verdadeiro, sente a noite solitária se aproximar mais uma vez, lá se vão 64 anos. O ar melancólico do pai permanece. Antes de o casal deixar o estúdio, James pergunta:

- Você vai ficar bem?
- Vou, não se preocupe.
- Amo você, pai. Tenha uma boa noite.
- Durma bem, meu filho.

Sozinho. Num reflexo, procura uma janela para olhar a noite, mas se lembra que o estúdio é vedado. O fim é um sentimento próximo, real, muito ao contrário do que era naqueles dias frios de Allerton. Não vai haver muitos anos a partir de agora. A longa e sinuosa estrada está chegando ao fim. A memória está quase cheia. Então ele percebe. É um bom título para uma canção ou para um disco. Quase automaticamente ele recomeça. Apanha o violão e perfaz os primeiros acordes, cantarolando os versos iniciais de Ever present past. Vai ficar assim até o amanhecer, até terminar.

(Publicado em novembro de 2009 pelo Claro!, suplemento do Jornal do Campus editado pelos alunos de jornalismo da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo.)

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