26 janeiro 2015

Almas mofadas

Era inevitável: a metrópole ficaria sem água. Uso indiscriminado, mudanças climáticas, diminuição das chuvas, destruição de matas ciliares e de mananciais tinham criado um cenário desesperador. Ao invés dos investimentos em infraestrutura, o governo tinha aberto o capital da companhia de águas e distribuído o lucro aos acionistas. Fora a economia espontânea da população, algo que deveria ser recorrente, habitual, nada fora pensado para compensar os prejuízos da escassez que minguava o principal reservatório da cidade.

Depois da utilização de três reservas consideradas mortas, as previsões mais otimistas garantiam que a água duraria três ou quatro meses, no máximo. Então começaram a aparecer as explicações dos especialistas. A cidade viveria alguns anos de racionamento e escassez até que, enfim, chegasse o próximo ciclo das águas, até que a média histórica de chuvas fosse restabelecida. Durante esse tempo centros de compras, restaurantes e até indústrias teriam de ser fechados em determinados períodos. Haveria também um êxodo urbano. Como em um filme catástrofe, cidadãos partiriam em busca de solo mais fértil onde pudessem reencontrar a vida que, eles apenas suspeitavam, já tinham perdido.

Houve esperança de que um improvável estadista brotasse das entranhas do governador. Houve esperança de que a autoridade assumisse a crise e conversasse com segmentos diversos da sociedade buscando orientação, instruindo a população, sem rodeios, sem meias palavras, sem recorrer a um vocabulário empolado e pobre para dizer o que poderia e deveria ser feito. Tudo não passou de esperança. A cidade, passiva, esperava pelo pior.

Perto do prazo estipulado para o fim, perto da realização na vida prática da desertificação que há muito já dominava a alma daqueles cidadãos, começaram as torrentes. O céu vertia um volume de água inimaginável e insólito. Os efeitos imediatos eram velhos conhecidos: enchentes, quedas de árvores, pane em semáforos de importantes cruzamentos e falta de energia elétrica nos bairros periféricos.

As chuvas, porém, caíram ininterruptamente em todas as regiões, sem trégua ou misericórdia. A população, inundada, não sabia o que fazer. No começo todos pensaram que fosse uma dádiva e houve até quem tentasse glorificar o governador, mas logo a bênção foi atribuída a um santo. Isso durou pouco. Foi quando todos viram que a desgraça que se abatia sobre a cidade não tinha nada a ver com o divino.

Bairros baixos começaram a submergir. Os altos, nos topos de colinas que um dia pertenceram às árvores e aos bichos, ficaram ilhados. Em algum momento houve a tentativa de viver sobre os telhados, mas era impossível. Também os telhados desapareceram. Em meio a uma interminável tempestade de raios, não havia helicópteros para sobrevoar as regiões alagadas e abastecê-las. Barcos eram afundados em meio às vagas. Essa situação, drástica, implacável, durou três anos e meio. Nem a previsão do êxodo urbano foi confirmada. Os que conseguiram sair foram tão poucos que se tornaram sobreviventes improváveis. Saíam com o que tinham: corpos maculados e olhares inundados.

A metrópole não resistiu. Era como se as barragens de uma represa impossível tivessem repentinamente se rompido jorrando toda a água do mundo. Era como se Deus, cansado de ser desafiado, finalmente pusesse termo a um antigo plano de aniquilar tudo: bairros, prédios, ganância, indiferença, prepotência, sonhos e toda a sujeira que se formara naquelas almas antes secas e, no fim de tudo, mofadas.

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