09 outubro 2025

O que é literatura? Divagações sobre o Prêmio Nobel de László Krasznahorkai

Hoje pela manhã, logo que foi anunciado o Prêmio Nobel de Literatura ao húngaro László Krasznajorkai, comprei aquele que é considerado seu trabalho mais conhecido e talvez o mais importante, o romance Sátántangó. Na última semana, desde que o nome do brasileiro Milton Hatoum passou a ser cotado em casas de apostas, procurei me informar sobre as reais possibilidades de diversos candidatos. Krasznajorkai aparecia na ponta de uma lista extensa ao lado de nomes como o da chinesa Can Xue, do romeno Mircea Cartarescu e do australiano Gerald Murnane, que figuravam um pouco acima de escritores bastante cotados nos últimos anos como o japonês Haruki Murakami e o estadunidense Thomas Pynchon.

Diversos artigos de gente especializada no Nobel de Literatura diziam que era chegada a hora de um homem branco do leste europeu, um ano depois que o prêmio deu um pulo na Ásia para encontrar uma mulher, Han Kang, no ano passado (leiam, é aterrador). Então era a vez de Krasznajorkai ou de Cartarescu. Deu o primeiro.

Desde que li a apresentação de Sátántangó me entusiasmei com Krasznajorkai. "A ação se concentra na chegada de um homem misterioso, que pode ser um profeta, um vigarista, ou o próprio demônio, a uma aldeia húngara onde a chuva não para de cair", diz um trecho. Sabe-se que não se deve comprar um livro pela capa, mas acredito firmemente que se pode e até se deve comprar um livro pela apresentação, ainda que, como a cobertura, nem sempre ela corresponda ao conteúdo.  

A chamada, no entanto, veio ao encontro de minha concepção sobre literatura. É claro que a literatura é um mundo que tudo comporta (está aí a história literária, que não me deixa mentir), mas, talvez pelo colonialismo, pelo distanciamento geográfico e linguístico de um brasileiro em relação a um húngaro, o que torna Krasznajorkai e qualquer outro escritor do Leste Europeu bastante exótico aos meus olhos, e talvez ainda devido a Gogol, Tolstói e Kafka, penso que a chegada de um homem misterioso que pode ser o próprio demônio a uma aldeia húngara onde a chuva não para de cair exemplifique perfeitamente o que faz a arte literária: ela te desloca de seu mundo habitual e conhecido (e, divagação dentro da divagação, penso em Se um viajante numa noite de inverno, de Italo Calvino. A literatura é uma eterna possibilidade, um "se", um "pode ser"...).

Por outro lado (ou do outro lado), o exotismo do escritor húngaro para um possível leitor brasileiro pode não ser assim tão diferente do exotismo de um escritor brasileiro para um leitor húngaro. Muito já se falou e se escreveu, inclusive com bastante rancor, sobre como os europeus esperavam de nós, brasileiros, a confirmação do exotismo, deixando de lado trabalhos em que não houvesse a correspondência entre o que se narra e de onde se narra, sobre "o quê" se narra. Nessa linha crítica e de leitura, muitos justificam até hoje o enorme sucesso de Jorge Amado no exterior. 

Mas, aqui entre nós, como se imagina que um húngaro veja o Brasil? Como eles veem o "país do carnaval" ou querem ver a Amazônia? Nesse sentido, teria sido um acontecimento se o prêmio fosse para Milton Hatoum (meu palpite é que sua vez chegará), pois eles teriam gratas surpresas, do mesmo modo que espero ter surpresas com a leitura de Sátántangó. Pois não é com esse olhar sobre o exótico, sobre o diferente, sobre o inabitual e o extraordinário que o leitor se volta para a literatura? Não é exatamente isso que o leitor espera, assim como eu espero que minha imaginação se enriqueça com a possibilidade de o demônio surgir num vilarejo da Europa central onde a chuva não para de cair?

E o mais curioso e desconcertante é perceber que, mesmo diante disso tudo, uma obra literária não tem correspondências (e aqui eu me refiro a uma obra de arte literária). O que ela diz, da maneira como ela diz, só ela pode dizer. Por mais que um escritor se filie a outro, que uma obra seja tributária de outra ou mesmo de uma tradição em que se inscreve, o que deve sobressair nela é precisamente seu refinamento e sua originalidade. E o comitê do Prêmio Nobel, como costuma fazer, soube apontar isso muito bem em seu habitualmente lacônico e preciso comunicado de imprensa sobre o vencedor. László Krasznajorkai ganhou o prêmio "por sua obra convincente e visionária que, em meio ao terror apocalíptico, reafirma o poder da arte". Em outras palavras, por sua singularidade. Não vejo a hora do meu livro chegar. 

Ilustração: Divulgação/Prêmio Nobel

16 agosto 2024

'Pilatos', de Carlos Heitor Cony, simboliza o Brasil de Delfim Netto


Pilatos
, romance de Carlos Heitor Cony publicado em 1974, pode ser lido como um retrato do Brasil de Delfim Netto, um dos artífices da ditadura militar morto na última segunda-feira. O livro conta a história de um homem que, após sofrer um acidente, tem o pênis extirpado e passa a circular como um morador de rua pela cidade do Rio de Janeiro. Nessas andanças, carrega, num vidro de compota, o resíduo de sua virilidade.

Apesar do estilo sóbrio, ao mesmo tempo contido e poético que marca os outros trabalhos do autor, tudo nesse romance beira o sórdido. Sendo um autor estabelecido e um jornalista notório, perseguido pela ditadura mas visto com ressalvas pela esquerda, é como se Cony decidisse escancarar de uma vez o achincalhe, a esculhambação e o descaso de um país em franco declínio moral e civilizatório. 

Além do mutilado, acompanham suas aventuras um fascista com um furor sexual irrefreável e contista diletante, um velho golpista aspirante à nobreza, um morador de rua não menos velho e faminto para quem tudo é comida, um maconheiro e guerrilheiro cansado e um chinês perdido e sodomizado. Cada um deles pode ser entendido como uma metáfora de um país castrado, com uma elite cheia de artimanhas e descolada da realidade, uma esquerda perdida entre a guerrilha urbana e o desbunde e um povo sem voz que paga o preço por decisões que ignora. 

Em um primeiro momento, o personagem castrado se associa ao fascista, um homem chamado Dos Passos que faz pequenos trabalhos sujos para os militares e vive com ideias mirabolantes como transformar o pênis em conserva em astro de cinema. Em suas andanças, eles vão parar em uma igreja de subúrbio com um violino afrodisíaco antes de acabarem presos com aquela trupe caricata. 

As aventuras picarescas, o centro fétido de uma cidade cheirando a fuligem, as casas de subúrbio deterioradas e abandonadas, os botecos encardidos, os velhacos, o fascismo, a brutalidade policial, a picaretagem, tudo dá uma ideia da face real do “milagre brasileiro”. 

Em 1967, Cony tinha publicado Pesach: A Travessia, um romance engajado em que o protagonista, um escritor de sucesso como o próprio Cony, inicialmente indiferente à ditadura, acaba aderindo à luta armada. O livro foi lido como uma crítica de Cony ao Partido Comunista, que tinha decidido não pegar em armas contra os milicos. 

Mas se naquele romance o engajamento era latente, em Pilatos, o aparente desbunde e o descaso do autor com a literatura e a realidade (e por vezes com o próprio realismo) atingiria em cheio o tecido social, sem ser panfletário. Não por acaso, era o livro favorito dos tantos que o próprio Cony escreveu até aquele momento e que voltaria a escrever apenas vinte e um anos depois. 

Pilatos foi um basta de Cony à literatura. Em entrevistas, ele se dizia cansado e declarava que queria aproveitar a vida. Mas pode ter sido uma espécie de basta à própria ditadura, como se a realidade fosse tão sórdida e absurda que a única representação possível dela fosse o silêncio. Coincidência ou não, ele só voltaria a publicar em 1995, quando o Brasil vivia a ilusão de que aqueles tempos sombrios tinham ficado para trás.

01 junho 2021

'Galera' ou a evocação do avô

    


    "Galera" é um livro que evoca a figura do avô, morto há muitos anos, e as impressões por ele deixadas na vida do narrador. Trata-se de uma ficção, em que o autor recorre a memórias e a elementos biográficos e autobiográficos para recriar um mundo interiorizado e desaparecido.

    Confira abaixo a apresentação do livro.

    A perplexidade provocada pela descoberta de um caderno desperta no neto o desejo de reconstituir a vida do avô, morto há muitos anos. 

    Entre sonhos e memórias, o narrador resgata a trajetória individual, familiar e profissional de um homem comum, passando por episódios corriqueiros e marcantes que têm como pano de fundo os governos de Getúlio Vargas, a Ditadura Militar e a redemocratização. 

    As visitas a casa dos avós em Itu, a rotina diária, a presença da irmã e as figuras do pai e da mãe completam o cenário, que constitui um retrato da vida de uma família paulista nos anos 1980 e 90, numa dosagem certa do sentimento da perda e da percepção da marca profunda deixada pelo avô na vida e no espírito do neto.

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28 maio 2021

As metamorfoses (anti-Kafka)

    Quando certa manhã Gregor Samsa despertou de sonhos intranquilos, viu-se em sua cama metamorfoseado num inseto monstruoso.

    Mas ele não foi o único.

    Pouco depois de o caixeiro-viajante viver sua tragédia pessoal e familiar, outras transformações começaram a ocorrer.

    Logo as metamorfoses tornaram-se incontroláveis. Expulsos, abandonados, fugitivos, os insetos ganharam as ruas e começaram a acasalar entre si, botando ovos por toda parte. Não demorou para criarem uma prole tão numerosa quanto incontável.

    Está claro que, passada a reação inicial de terror e melancolia das famílias, que aliás seguiu quase passo a passo as reações da família Samsa, os humanos entenderam o que se passava e procuraram matar todos os insetos que podiam. No começo pareceu uma brincadeira divertida, mas logo os métodos de se tornaram exercícios de extermínio também em si monstruosos.

    Era tarde. Os homens não demoraram a reconhecer seu fracasso e, um a um, foram devorados. Até o último.

19 maio 2021

O fogo de Kafka

    Ao mandar queimar sua obra inédita, Franz Kafka se apropriou do direito universal dos escritores de destruir a própria obra. Depois que Kafka foi salvo das chamas, toda disposição de escritor pelo fogo não passa de uma emulação kafkiana.

O que é literatura? Divagações sobre o Prêmio Nobel de László Krasznahorkai

Hoje pela manhã, logo que foi anunciado o Prêmio Nobel de Literatura ao húngaro László Krasznajorkai, comprei aquele que é considerado seu t...